segunda-feira, 9 de julho de 2012

"Psicopatia", Perversão e Criminalidade ● "Psichopathy", Perversion and Criminality

       O homem não é naturalmente bom, nem naturalmente mau, mas em todos os lugares, viver de acordo com o bom é viver segundo a moral, é ser honrado. Ao passo que viver contra esse ideal, é estar sujeito à desconsideração e ao preconceito (Weil, 2011). Ser “bom”, segundo uma história etimológica, significa ser útil, aristocrático, espiritualmente nobre e ser “ruim” está relacionado ao plebeu, ao comum, ao simples (Nietzsche, 2010). Esses termos eram criados e naturalizados por pessoas de poder, que ocupavam cargos aristocráticos e baseavam-se em seus próprios interesses para separar aquilo ou aquele que poderia ser útil, daquilo ou daquele que não teria importância. Por muito tempo, essa aristocracia esteve ligada ao espiritual e à Igreja, o que indica que muitos dos valores criados há milhares de anos e enraizados até hoje nasceram a partir de pressupostos e princípios religiosos (Weil, 2011).
            Mas o homem não pode falar de bem, se não tiver pleno conhecimento de seu oposto, o mal. É justamente pela contrapartida que se faz o termo, não é possível se falar de bem, sem saber o que é mal, ao mesmo tempo em que é impossível se falar do que é claro, sem saber o que é escuro, doce, sem saber o que é salgado, liso, sem saber o que é texturizado. Existe uma esfera dicotômica dentro da genealogia da moral, influenciada por necessidades e desejos, que luta para separar o homem em completamente bom ou completamente ruim. Mas, é claro, essa separação nunca seria possível se portar-se como “ruim” não fosse um risco a todo ser que almeja ser totalmente “bom”.
            Por uma aspiração à santidade, as pessoas já chegaram a manifstar comportamentos altamente destrutivos. Flagelar-se, inflingir-se um castigo significava querer educar o corpo, dominá-lo, mortificá-lo para submetê-lo a uma ordem divina. Mas “os flagelantes acabaram por ser vistos como possuídos pelas paixões demoníacas que eles pretendiam vencer” (Roudinesco, 2008). A flagelação foi, então, comparada a um ato de devassidão: o que antes se dirigia a um ideal religioso e divino, por própria influência da Igreja, passou a ser visto como “ruim”, “demoníaco” e devasso.
            Da mesma maneira, os costumes pederastas gregos, expressos por rituais de iniciação sexual masculinos, revelavam comportamentos hoje tidos não só como pedófilos, como por incestuosos e homossexuais. Apenas mais um exemplo de comportamentos vistos como “normais” e esperados socialmente, influenciados por novos ideais e valores que acabam por taxá-los como algo próximo ao demoníaco, ao inútil, ao perverso. Relações homossexuais, não necessariamente intrafamiliares, ocorrem já há muitos séculos, marcaram a história do mundo e sempre estiveram presentes na rotina humana. Foi a partir do fortalecimento dos ideais religiosos, além da ascensão dos pressupostos científicos iluministas, que a homossexualidade passou a ser vista como promíscua e desprovida de qualquer utilidade pública e social, pois não favorecia a formação da família e, portanto, não poderia ser vista como ato cabível e desejável (Roudinesco, 2008).
            A manifestação de todos esses comportamentos indesejáveis, que vão contra o que é estabelecido como moral pela vontade dos maiores, não poderia ser vista de outra maneira, a não ser como desviante e anormal. Assim, uma união entre princípios morais e religiosos e conceitos científicos vigentes puderam, juntos, começar a criar as bases para o que hoje denomina-se psicopatologia. Aquilo que é indesejável e que se manifesta contra os ideais era, portanto, desviante, patológico e inconcebível e deveria receber um tratamento ideal: o afastamento social.
            Falando-se de pederastia, flagelação e homossexualidade, por exemplo, o termo perversão passou a integrar uma noção de degeneração ou loucura moral, e as perversões sexuais entraram no vocabulário da psiquiatria como anomalias ou aberrações da conduta sexual. Com origem no latim perversione, a perversão significa nada mais do que tornar-se perverso ou mau, corromper, depravar, desmoralizar (Ferraz, 2010), ou seja, significa estar inadequado ao estabelecido como moral, posicionar-se como “inútil”, “pobre” e “indesejável” e ser visto como mau.
            A proposta higienista, fundada a partir de ideais que valorizavam a formação da família e do homem perfeito criou costumes de discriminação e afastamento social àqueles que se portavam como indesejáveis. Loucos, criminosos, prostitutas, pobres, doentes mentais e qualquer “classe” humana tida como inútil e “ruim” era então excluída, inserida em espaços denominados asilos. Assim, era possível filtrar tudo o que manifestava a parte obscura do ser humano, como se o convívio em sociedade significasse má influência, contágio ou disseminação de algo que já não estivesse presente dentro de todos.
             Posteriormente, reformas na área da saúde mental transformaram os asilos em instituições teoricamente melhores, com tratamentos mais humanos e eficientes. Os hospitais psiquiátricos começaram a se dirigir aos “loucos” e as penitenciárias, aos criminosos. Aos “loucos infratores”, foram criados manicômios judiciais.
            As próprias penitenciárias podem ser vistas por um prisma histórico mais complexo. Muito antes de se pensar em um regime fechado de punição, o tratamento aos indesejáveis se dava de uma forma não mais perversa do que as execuções públicas. Em rituais de esquartejamentos, queimadas, enforcamento e trações à cavalo, o objetivo era castigar o corpo do sujeito, expondo-o ao público para servir de exemplo (Foucault, 2010). O show de horror, comparativamente muito pior do que os atos de flagelação, dirigiam-se ao mesmo destino: ceder o corpo às ordens divinas, castigar e mortificar para alcançar o perdão. A diferença é que a flagelação consistia em um ato pessoal de “progresso”, ao passo que as execuções penais eram impostas a terceiros. Ambas, vistas atualmente, assemelham-se ao que hoje se denomina masoquismo, sadismo e até homicídio. Observa-se, então, por trás de comportamentos tidos como desejáveis – castigar os que merecem - condutas próximas às repreensíveis: violentar aquele que violentou, impor sofrimento ao que outrora o causou, projetar agressividade naquele que a possui.
            Como afirma Beccaria (2005), “o assassinato que nos é apresentado como um crime horrível, vemo-lo sendo cometido friamente, sem remorsos”. De maneira semelhante, os atos cruéis de Auschwitz, que torturaram e executaram milhares de judeus pela crença de serem “impuros” ou pertencentes a uma “raça inferior”, demonstram-se, mais uma vez, como possibilidades de comportamentos perversos e violentos, por parte de homens “comuns”, em obediência a ordens superiores, convenções sociais ou princípios “legítimos” (Roudinesco, 2008). Ou seja, ato perverso por ato perverso, não se pode apenas olhar para o homem indesejável, o que comete crimes horrendos, buscando a dicotomização já dita anteriormente. Se estamos falando de “bem” e “mal”, cateogorizando o “mal” como símbolo de tudo o que vai contra o moralmente estabelecido, as atitudes violentas dos “normais” também se enquadrariam no simbolismo do “mal” e, portanto, ao final, tudo se resumiria a obscuridade. A verdade é que ninguém se constitui apenas por “bem” ou por “mal” e não somente os vistos como indesejáveis, loucos, pobres de espírito são capazes de cometerem atrocidades: elas são percebidas em toda parte, legítima ou ilegitimamente.
            Depois de alguns anos, o paradigma da punição passou por modificações. A punição agora se dirigia à alma e, quando envolvia morte, exigia a diminuição do sofrimento e da dor. Além disso, foram adquiridas “medidas de segurança”, que acompanham a pena e se destinam a controlar o indivíduo, neutralizar sua periculosidade, a modificar suas disposições criminosas, cessando somente após a obtenção de tais modificações (Foucault, 2010). Para isso, equipes multidisciplinares se dirigiam a invocar a loucura para justificar o ato criminoso, qualquer infração incluía a hipótese da loucura. A partir do momento em que essa faz parte daquele que a possui e que ele é única e exclusivamente responsável por sua loucura, a responsabilidade do crime é deslocada de uma sociedade problemática, para um cidadão problemático.
            O direito de punir passou de vingança de um soberano, a uma defesa da sociedade. A pessoa que comete um crime se torna um traidor da ordem social e passa a merecer a união da sociedade contra ele. Assim, os homens se vêem no direito de exercer sua violência sobre o descumpridor, não apenas a partir da liberdade limitada, mas a partir de olhares discriminatórios, exclusão social, preconceito e asco. Se a pena de morte não é legalizada, ela acaba por ocorrer de um jeito ou de outro. O criminoso que se mostra traidor está fadado à prisão perpétua, à morte de espírito. E aos “incorrigíveis”, aos quais a limitação de liberdade não seria útil, não caberia melhor estratégia a não ser eliminá-los (Foucault, 2010).
            Não é preciso ir tão longe, a violência que se vê sendo cometida há tantos séculos está ainda manifestada nas rotinas humanas, serve de solução para problemas, de artifício para algumas profissões, de condutas educativas e, até, de meios de comunicação e lazer. A humanidade não só é movida pela violência, como algo que pertence e está inerente ao ser, como se alimenta dela, utiliza-a como objeto, resposta e diversão. Iniciando nos rituais de execução pública, relatados anteriormente, como verdadeiros espetáculos do horror, que uniam populações curiosas e ávidas por vingança, passando pelos depósitos de gente, ou asilos, direcionados a transformar qualquer vida em sobrevida e mazela, chegando próximo às guerras, chacinas, torturas e genocídios, aos golpes políticos, às literaturas subversivas, ao culto dos palavrões,  à violência à mulher, idosos, crianças, homossexuais e negros, chegando finalmente ao que se vê frequentemente nos meios públicos como programas de televisão, filmes e lutas. O homem está cercado por essa violência, em menor ou maior grau, absorve, consome, interpreta e reproduz, sem nem ao menos perceber. O que acontece com o mundo? Está se aproximando ao caos da agressão ou só se demonstra, desde seus primórdios, extremamente violento?
            O que seria do sadismo se não tivesse existido Sade? Mas muito mais do que isso, o que seria de Sade, se não houvesse sua violência? Mesmo que não totalmente comprovada sua atuação, sua literatura retratava o que o público queria ver. Ao mesmo tempo em que revela os desejos, a curiosidade e as necessidades humanas, revela justamente aquilo que todos lutam para esconder, para manter entre quatro paredes. Sade é um veículo que manifesta as vontades mais profundas e obscuras humanas, mas como todo corajoso que as expressa, sofreu discriminação, isolamento social e uma obrigação ao silêncio. Mas o que seria de Sade e de sua criatividade extremamente sexual, se não houvessem pessoas para ler, deliciar-se e disseminar suas obras?
            Ao mesmo tempo, o que seria de Monsieur Verdoux se não fosse seu notável charme em suas mais perversas atitudes?  Chaplin “manipula conscientemente seu público, quer obter o riso, a emoção, o estupor” ( Susini, 2006). Os espectadores, então, permanecem felizes, realizados, talvez por assistirem um ídolo fictício, simpático, vítima do abandono social, realizando aquilo que possa ser o maior desejo de todos. A inversão chega a nível tão profundo, a ponto de levar o público a se posicionar contra a polícia, uma vez que o personagem é pego e precisa se submeter às consequências legais de seus atos. Como afirma Susini (2006), “Mas a verdade, a nossa, despojada de nossa hipocrisia, nos é mostrada através dos jornalistas ávidos de sensações e imagens”.
            Os  meios de comunicação podem ser vistos como a reprodução de desejos e necessidades de quem a produz, unida ao que o público deseja ver. É um veículo de dupla significação, pois ao mesmo tempo em que se utiliza dos desejos dos alvos para se realizar, alimenta-os e cria desejos mais profundos. A partir disso, fica clara  a estratégia da mídia em divulgar e reproduzir todo tipo de violência. Não se trata, necessariamente, de uma comunicação perversa, trata-se de um trabalho de pesquisa, que ganha sua notoriedade manifestando exatamente o que quer ser visto. Ou seja, se o que se expressa é violência e, ao mesmo tempo, é o que se consome e assiste, a mídia nada mais é do que um meio de expressão da violência que existe em todos, que quer ser manifesta, que quer ser vista, mas por algum motivo precisa estar no mundo da fantasia, do irreal, do ilusório.
            O que há em comum, portanto, entre gregos pederastas, aristocratas sádicos, líderes de guerra, idealizadores de genocídios, políticos corruptos, Sade, Monsieur Verdoux, Hannibal, “Chico Picadinho” e todo o resto da sociedade que, de alguma maneira, admira, observa, assiste e procura tudo isso? Não é preciso criar nomes ou rótulos para se referir ao ser humano. Está claro e exposto que todos possuem em comum o desejo pela violência, mas a partir de conceitos morais, criados e enraizados já há tanto tempo, essa agressividade precisa ficar velada, escondida e se manifesta apenas em momentos oportunos. De maneira análoga à visão da loucura, olhando de perto todo ser humano, ao final não teríamos mais sociedade “normalmente” construída. Acabaríamos por isolar socialmente todos aqueles que correm o risco de irem de encontro com as leis morais, mas ao final, perceberia-se exatamente o que conta “O alienista” (Assis, 1998), a inversão de um mundo comum, público, com rotinas usuais, a um mundo perverso, violento, trancafiado e isolado. Ou seja, observando detalhadamente o caráter humano, chegaria-se na descoberta de que todos, sem exceção, correm risco de passarem ao ato, de se mostrarem violentos, de manifestarem seus mais profundos desejos e, em palavras mais concretas, de cometerem crimes.
            Partindo desse pressuposto puramente estatístico, o mesmo que acaba por taxar como louco aquele que se comporta e percebe o mundo de maneira “inusual”, o mesmo pode ser questionado quanto ao que se denomina Psicopatia. Uma “doença do caráter”, que acomete mais homens do que mulheres, um padrão de comportamentos frios, calculistas e sem consciência, vindos de uma pessoa carente de empatia, manipuladora e cruel (Silva, 2008) ou um rótulo mal utilizado para se referir a um ser humano, com dores e sofrimentos intensos, que acabam por “passar ao ato” a partir de histórias e significações complexas, traumáticas e aterrorizantes?
            Se comportamentos tidos como psicopáticos ou próprios de um Transtorno de Personalidade Antissocial  referem-se a uma ausência de consciência, poderíamos dizer que o mundo se comporta inconscientemente há séculos? O que significa uma “doença do caráter”? Resume-se a um conjunto de comportamentos que vão contra o moralmente estabelecido? E de quem é essa moral? A quem pertence, quem a criou? Por que ver o que não aceita a moral tal como ela é como “doente” ao invés de ver o que se esforça para conter sua própria natureza em prol de regras e costumes artificialmente criados? Se os comportamentos frios e calculistas se referem a utilizar o outro em prol das próprias necessidades, em pleno 2012 seria possível, portanto, realizar uma mega ação diagnóstica, que transformaria o mundo num verdadeiro hospício a céu aberto. Nunca se percebeu sociedade tão narcisista quanto atualmente, que luta para valorizar o próprio corpo e os próprios bens e, automaticamente, desconsidera o outro. Ou seja, nesse continuum narcisista, que visa a própria felicidade, promoção e bem-estar a qualquer custo, o outro acaba ficando em segundo plano e existe um risco de se comportar friamente. E, finalmente, até mesmo nos atos mais perversos, cometidos pelos infelizes rotulados “psicopatas” ou por pessoas “normais”, vê-se um nível de empatia enorme. Utilizar-se do outro para prazer próprio significa pesquisar seus desejos e necessidades, alcançá-lo a partir disso, manipulá-lo, persuadí-lo. Não existe nenhuma outra forma de se perceber o que o outro deseja a não ser exercitando uma poderosa empatia.
            A Psicopatia, assim como os conceitos de “bem” e “mal”, são termos criados pelo homem, a partir da necessidade de se categorizar algo que precisa ser evitado, visto, aceito ou modificado. É uma invenção que visa colocar em palavras tudo aquilo que parece inaceitável e, novamente, realiza-se a manobra de projeção da culpa e responsabilidade para aquele que porta essa condição. A violência é um ciclo, se vivenciada em algum momento da vida, é capaz de ser assimilada, aprendida e, posteriormente, a qualquer momento, reproduzida, jogada para fora para perder seu poder interno destrutivo. O homem vivencia variados tipos de violência ao longo de toda a sua existência, em graus diversificados, portanto, está bem treinado para reproduzi-la quando for necessário. Não somente é violento aquele que invade o espaço do outro, priva-o de seus direitos à vida, limita sua existência, arranca-lhe seus bens ou, de forma geral, comporta-se contra o que lhe é solicitado socialmente. Violento é qualquer homem que, em prol de suas próprias necessidades, deseja, planeja, comete e verbaliza coisas que causem sofrimento. O policial agressivo que tortura o suspeito, o político corrupto que não sabe lidar com tanto poder, a mãe nervosa que espanca o filho, o professor autoritário que limita a criatividade do aluno, o marido machista que submete a esposa às suas regras, o colega de classe frustrado, que precisa submeter os mais fracos a seu próprio sofrimento, o lutador venerado nacionalmente, que se enriquece a cada “batalha” vencida e o cidadão que, de alguma forma, tira proveito de situações violentas para própria diversão ou prazer. São tantos casos comuns e rotineiros e a mesma violência sendo passada para frente, ininterruptamente, num ciclo vicioso.
            Após uma vasta análise da genealogia da moral, que tem formado condutas e construído regras e valores, além de uma vasta análise dos episódios de violência tão presentes em nossa história da civilização até atualmente, pode-se chegar a uma conclusão: o homem possui desejos profundos, mas luta para se encaixar nas convenções diariamente e, no meio dessa empreitada, sempre há alguma maneira de “fugir” dessa angústia. O desejo à violência, então, se manifesta a partir de atitudes rotineiras e imperceptíveis. Mas, quando um ato de extrema violência ganha notoriedade pública, o mecanismo de projeção se faz útil. Tudo aquilo que se deseja fazer, mas é reprimido, visto com olhos críticos e castradores, projeta-se no outro que fez a passagem, que atuou por algum motivo, e então a sociedade está “salva” de mais uma responsabilidade, que agora encontra-se plenamente projetada no grande culpado e responsável pelo sofrimento humano. A violência é um enorme ciclo vicioso que precisa ser interrompido. Se se deseja modificá-la, precisa-se estar em contato com a própria violência, compreendê-la, questioná-la. Perceber o quanto somos agressivos e o quanto desejamos isso não significa liberar-se à natureza e iniciar repertórios de comporamentos destrutivos e ameaçadores. A percepção da violência é um primeiro passo para romper e prevenir que esse ciclo progrida, evitando projeções, discriminações, isolamentos sociais, vistas grossas, negligência e, consequentemente, visando relações sociais mais humanas, pacíficas e compreensivas. Se realmente existe “Psicopatia”, que ela seja vista como uma maneira de viver, uma série de significações extremamente doídas, recheadas por experiências de sofrimento que precisam ser ressignificadas. Talvez, um grande avanço na quebra desse ciclo seja perceber, de uma vez por todas, que até mesmo o “mal” precisa ser compreendido, pois esse mesmo “mal” faz parte todos nós.

BIBLIOGRAFIA
Assis, M. (1998) O alienista. Porto Alegre: L&PM.
Beccaria, C (2005). Dos delitos e das penas. 5ª edição. Martins Fontes     
Ferraz, F (2010) Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Foucault, M. (2010) Vigiar e Punir: a história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes
Nietzsche, F. (2010) Genealogia da Moral. São Paulo: Madras
Roudinesco. E. (2008) A parte obscura de nós mesmos. São Paulo: Zahar
Susini, M-L (2006) O autor do crime perverso. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
Weil, E. (2011) Filosofia Moral. São Paulo: É Realizações

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Psicopatologia II : uma introdução psicanalítica ● Psychopathology II: an introduction to Psychoanalysis


O modelo topográfico criado por Freud propõe que o sistema mental se divide em três instâncias. A porção inconsciente é composta por traços mnêmicos que não podem vir às porções sub-consciente e consciente porque existem censuras. O inconsciente diz respeito a um lugar psíquico não material, caracterizado por desejos e pulsões recalcadas. O sistema pré-consciente, que se situa entre o inconsciente e o consciente pode "acessar" e manifestar conteúdos inconscientes que são "liberados" pela censura. A parte consciente é uma parte sensorial e perceptiva, diz respeito à experiência de cada um, ao que é plenamente acessível, mas só demonstra uma parte dos processos psíquicos.
Como já dito anteriormente no outro post, temos a tendência a tentarmos manter a homeostase interna. Dessa maneira, munimo-nos frequentemente de mecanismos de defesa que visam segurar e impedir que conteúdos, desejos e pulsões inconscientes se manifestem. Esses mecanismos de defesa são inconscientes, ou seja, muitas vezes realizamos sem termos plena consciência; e são responsáveis pela manifestação de sintomas e comportamentos.
Posteriormente, Freud teorizou sobre outras três instâncias que não renunciam as outras, só as complementam. O Id, por exemplo, é análogo ao inconsciente, constituído pelos desejos e pulsões. É uma parte obscura e impenetrável da personalidade. O Ego é responsável por moderar o Id, ele constitui a censura, controlando os interesses do sujeito. O Ego é construído a partir de várias interações entre o indivíduo e o meio e as consequentes internalizações de significados, valores, interpretações. Ele é composto por uma parte consciente, que é responsável pela atividade do ser, pela tomada de decisões e integração de dados perceptivos. Sua parte inconsciente é responsável pelos mecanismos de defesa supracitados, que controlam e neutralizam os desejos do Id. O Superego também é formado por processos de identificação, assim como o Ego. Apesar de ser, em sua maioria, inconsciente, sua parte consciente cuida da consciência moral e das funções de auto-observação, ditando atitudes e comportamentos.
A partir dessa teoria, portanto, é possível se pensar em um enorme movimento psíquico que pode pender para o desequilíbrio. De um lado, encontram-se os desejos e pulsões inconscientes, que lutam para serem manifestados e realizados, de outro lado, Ego e Superego lutam para neutralizar e equilibrar esses desejos, barrando-os e impedindo que sejam manifestados. A ansiedade produzida por esse movimento constitui o caráter neurótico que a maioria de nós apresenta. 
Diante disso, o que caracteriza, então, a manifestação dos sintomas e a consequente configuração de uma psicopatologia?
Dependendo da maneira como cada instância será formada, a partir  das relações objetais vivenciadas pelo indivíduo, das castrações promovidas pelos pais, das soluções dos conflitos edipianos, da ferida narcísica, das identificações e internalizações e das consequentes formas que o indivíduo encontrará de se manifestar no meio, relacionar-se, pensar e comportar-se, seu sistema psíquico poderá apresentar conflitos que colaborarão para manifestações de sintomas. 
A manifestação de sintomas psicóticos, por exemplo, nada mais é do que uma falha do Ego e do Superego em barrar os desejos e pulsões do Id. O indivíduo deixa as fantasias e os devaneios se manifestarem e ocorre uma dificuldade de diferenciação entre o real e o irreal. Sintomas como delírios - alteração de pensamento- e alucinações - alteração da percepção- são dois dos principais observados. 
A partir de outro referencial, no entanto, existem configurações mentais que não se caracterizam como neuróticas, nem psicóticas. Os teóricos denominaram essa configuração de Borderline, um estado limítrofe que se situa entre a fronteira neurótica e psicótica e pode adquirir características e sintomas de cada parte, dependendo da formação psíquica de cada um. 
Pode parecer bastante complexa toda essa teorização e de fato ela é. Compreender a fundamentação psicanalítica não é uma tarefa fácil. Preocupei-me em abordá-la de uma maneira superficial e compreensível, pois há muito o que se conhecer para entender melhor sobre cada uma dessas características. O importante a se saber é que dentro de cada manifestação psicopatológica existe uma compreensão dinâmica. Mais importante do que saber da existência dos sintomas é saber a origem de cada um deles e o que cada um deles significa. Assim, é possível traçar um plano de tratamento muito mais eficaz. Como dito anteriormente, apenas tratar o sintoma não resolve o problema. Se você apresenta tosse durante uma gripe, tomar medicações que inibem a tosse não irá solucionar o problema base: a gripe. Se você apresenta insônia, falta de apetite e humor para baixo em uma Depressão, não soluciona o problema base apenas tomar medicações que modifiquem esses sintomas. É preciso compreender e ouvir cada característica, cada sofrimento e cada subjetividade. 
Mais adiante será possível compreender melhor como cada instância mental e cada "perfil" citado acima se manifesta. Tentarei escrever sobre as principais Psicopatologias, abordando não somente a abordagem psicanalítica, mas trazendo reflexões de outras abordagens sobre cada uma delas.



sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A Psicopatologia ● Psychopathology

           O paradigma ocidental costuma dividir o homem em duas dimensões distintas. De um lado, encontra-se a instância física e material, estudada por várias áreas do conhecimento, principalmente a medicina. Do outro lado, a instância psicológica ou mental, podendo ser considerada material ou imaterial (dependendo da abordagem). Por muito tempo -e pode-se dizer que até hoje- essa separação mente-corpo esteve presente em nossas teorizações. Talvez uma das maiores dificuldades que encontramos profissionalmente seja o obstáculo em se reunir todas as especialidades, fazer uma base interdisciplinar para auxiliar uma compreensão, um estudo ou uma prática eficiente. Ao mesmo tempo, observa-se que não somente a divisão mente-corpo está presente: o próprio corpo está segmentado em várias áreas do conhecimento. Esses conhecimentos e especialidades não se comunicam, às vezes até parece que esquecemos que todas as pequenas partes constroem um indivíduo pleno.
            A verdade é que também como o corpo, o mental adoece. Mesmo que tenhamos diferenças teóricas dentro de nossa profissão, é perceptível a dificuldade que enfrentamos em desbanalizar e em tornar mais conhecidas e mais compreensíveis todos os pequenos detalhes quanto às psicopatologias e ao funcionamento mental. A "doença mental" existe há muito tempo, já foi recebida com muito preconceito e já foi motivo de barbáries inimagináveis. Hoje apesar de melhor compreendida, enfrenta a interface da banalização e frequentemente é negligenciada, mesmo precisando de bastante atenção e cuidado. 
                  O ser humano atual vivencia dores diversas. Desde o seu nascimento, está lançado em um universo de sensações e significações que vão formar seu caráter (personalidade) e vão ditar suas tendências de comportamento e pensamento. Apesar de ser mutável e amplamente dinâmico, o ser humano conta com bases mentais mais profundas e duradouras, que podem estar presentes ao longo de muitos anos, em cada passo dado. Cada ser humano é diferente, possui suas próprias "digitais" mentais. A tendência é que haja uma homeostase interna. Todos lutamos mentalmente, mesmo que inconscientemente, para mantermos o equilíbrio mental, mas mais frequente do que imaginamos, esse equilíbrio não é tão facilmente conquistado e isso traz consequências diversas às nossas condutas e pensamentos, principalmente refletidas pela maneira como "escolhemos" resolvê-las ou diminuí-las. 
                   Dependendo da força mental de cada indivíduo, geneticamente influenciada ou ambientalmente influenciada, esse desequilíbrio mental irá se manifestar de formas distintas. Se há uma perturbação da homeostase, o sistema mental irá procurar a maneira mais próxima e mais plausível para resolver o problema. Quando o indivíduo não possui um aparato interno suficiente para retornar ao equilíbrio de forma eficiente, o sistema mental procura outras maneiras desadaptadas e comumente começa a demonstrar sintomas. O sintoma nada mais é, então, que um sinal de que algo está internamente desequilibrado e que o indivíduo talvez esteja utilizando maneiras alternativas, mal adaptadas, para resolver. O mesmo ocorre com nosso organismo quando estamos infectados por um vírus. A causa interna está instalada, nosso organismo procurará a maneira mais eficaz disponível para combater essa invasão e muitas vezes observamos os sintomas como sinais de que há algo errado. Analogamente, curar os sintomas sem focar na verdadeira causa do desequilíbrio significa não dar importância para a verdadeira raiz do problema e, portanto, abrir portas para que ocorra novamente ou que volte com uma força maior. A Psicologia se preocupa com a importância em dar voz para a angústia interna causadora do desequilíbrio. Além de medicar os sintomas (quando necessário), há a enorme necessidade de se compreender a raiz do problema, escutar o sofrimento.
                Ainda amparadas pelo paradigma mente-corpo, as profissões da saúde trabalharam para teorizar e pesquisar fenômenos mentais e orgânicos, para que pudesse ser mais fácil construir instrumentos de conhecimento e consulta. O DSM é o manual estatístico mais utilizado no mundo para essa finalidade. Ele mesmo contém em sua introdução uma reflexão acerca da importância didática de se separar os transtornos orgânicos dos transtornos mentais, mas alerta para a também importante necessidade de não se tornarem excludentes, no sentido de que mente e corpo interagem a todo momento e não é produtivo e seguro promover essa separação. Transtornos Mentais e de Personalidade são os mais frequentemente estudados pela Psicologia e possuem algumas diferenças entre si. Os Transtornos Mentais são condições psicológicas normalmente caracterizadas por episódios e com uma duração mais instável, aparecendo, normalmente, a partir do final da adolescência ou início da fase adulta. Eles causam prejuízos sociais, ocupacionais e funcionais para o indivíduo e precisam estar presentes por um período de tempo variável, dependendo do transtorno. Os Transtornos de Humor, uma das categorias dos Transtornos Mentais, são assim denominados por agruparem fenômenos mentais tipicamente relacionados ao estado de humor do indivíduo. A Depressão, por exemplo, é diagnosticada a partir de avaliações e entrevistas clínicas a fim de se constatar a presença de sinais e sintomas, além de uma duração de no mínimo duas semanas, caracterizadas pela presença de um humor deprimido ou "para baixo", na maior parte do dia, todos os dias. Os Transtornos de Personalidade também trazem prejuízos semelhantes às pessoas que os portam, mas possuem algumas diferenças. Ao se falar em personalidade, toca-se em uma característica mais estável e duradoura, um padrão de comportamentos e pensamentos, também manifestando-se comumente no final da adolescência ou início da fase adulta. Essa categoria, no entanto, é mais complicada de ser observada, é mais rara e mais difícil de ser diagnosticada. Possui um caráter ego sintônico, o que quer dizer que o indivíduo dificilmente identifica seus traços e os prejuízos decorrentes deles. São patologias mais fáceis de serem estabilizadas, mas não existe uma cura permanente, como uma gripe.
                 Independente da categoria dos transtornos, é preciso ter em mente algumas reflexões antes de iniciar seus estudos. Cada fenômeno mental se caracteriza por uma angústia mal resolvida. A compreensão dessa angústia, da forma como surgiu e a forma como foi "solucionada" é um passo importantíssimo para a estabilização e melhora de prognóstico. Ao falarmos em Transtornos de Personalidade, estamos lidando com um domínio teórico que diz respeito a características possivelmente observáveis em todo ser humano, em épocas e momentos variados de suas vidas. Isso significa que a não banalização das psicopatologias implica em primeiramente compreender o que significa adoecer mentalmente, em compreender qual o limiar patológico de cada traço de personalidade ou sintoma e, principalmente, em evitar rótulos e estigmas. Ao se fazer isso, é mais fácil tomar decisões técnicas mais eficientes e conscientes, baseadas em diagnósticos diferenciais, julgamentos mais precisos e expectativas e estratégias de tratamento mais otimistas. 
                  As psicopatologias devem ser vistas como manifestações humanas de pedidos de socorro. Mais adiante será possível comentar com mais detalhes cada fenômeno especificamente. Mas pode-se finalizar essa reflexão com as  seguintes questões: quais dores seriam suficientemente grandes para causar desequilíbrios internos e quais mecanismos de solução seriam mal adaptados o suficiente para produzirem sintomas?