quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Psicopatologia II : uma introdução psicanalítica ● Psychopathology II: an introduction to Psychoanalysis


O modelo topográfico criado por Freud propõe que o sistema mental se divide em três instâncias. A porção inconsciente é composta por traços mnêmicos que não podem vir às porções sub-consciente e consciente porque existem censuras. O inconsciente diz respeito a um lugar psíquico não material, caracterizado por desejos e pulsões recalcadas. O sistema pré-consciente, que se situa entre o inconsciente e o consciente pode "acessar" e manifestar conteúdos inconscientes que são "liberados" pela censura. A parte consciente é uma parte sensorial e perceptiva, diz respeito à experiência de cada um, ao que é plenamente acessível, mas só demonstra uma parte dos processos psíquicos.
Como já dito anteriormente no outro post, temos a tendência a tentarmos manter a homeostase interna. Dessa maneira, munimo-nos frequentemente de mecanismos de defesa que visam segurar e impedir que conteúdos, desejos e pulsões inconscientes se manifestem. Esses mecanismos de defesa são inconscientes, ou seja, muitas vezes realizamos sem termos plena consciência; e são responsáveis pela manifestação de sintomas e comportamentos.
Posteriormente, Freud teorizou sobre outras três instâncias que não renunciam as outras, só as complementam. O Id, por exemplo, é análogo ao inconsciente, constituído pelos desejos e pulsões. É uma parte obscura e impenetrável da personalidade. O Ego é responsável por moderar o Id, ele constitui a censura, controlando os interesses do sujeito. O Ego é construído a partir de várias interações entre o indivíduo e o meio e as consequentes internalizações de significados, valores, interpretações. Ele é composto por uma parte consciente, que é responsável pela atividade do ser, pela tomada de decisões e integração de dados perceptivos. Sua parte inconsciente é responsável pelos mecanismos de defesa supracitados, que controlam e neutralizam os desejos do Id. O Superego também é formado por processos de identificação, assim como o Ego. Apesar de ser, em sua maioria, inconsciente, sua parte consciente cuida da consciência moral e das funções de auto-observação, ditando atitudes e comportamentos.
A partir dessa teoria, portanto, é possível se pensar em um enorme movimento psíquico que pode pender para o desequilíbrio. De um lado, encontram-se os desejos e pulsões inconscientes, que lutam para serem manifestados e realizados, de outro lado, Ego e Superego lutam para neutralizar e equilibrar esses desejos, barrando-os e impedindo que sejam manifestados. A ansiedade produzida por esse movimento constitui o caráter neurótico que a maioria de nós apresenta. 
Diante disso, o que caracteriza, então, a manifestação dos sintomas e a consequente configuração de uma psicopatologia?
Dependendo da maneira como cada instância será formada, a partir  das relações objetais vivenciadas pelo indivíduo, das castrações promovidas pelos pais, das soluções dos conflitos edipianos, da ferida narcísica, das identificações e internalizações e das consequentes formas que o indivíduo encontrará de se manifestar no meio, relacionar-se, pensar e comportar-se, seu sistema psíquico poderá apresentar conflitos que colaborarão para manifestações de sintomas. 
A manifestação de sintomas psicóticos, por exemplo, nada mais é do que uma falha do Ego e do Superego em barrar os desejos e pulsões do Id. O indivíduo deixa as fantasias e os devaneios se manifestarem e ocorre uma dificuldade de diferenciação entre o real e o irreal. Sintomas como delírios - alteração de pensamento- e alucinações - alteração da percepção- são dois dos principais observados. 
A partir de outro referencial, no entanto, existem configurações mentais que não se caracterizam como neuróticas, nem psicóticas. Os teóricos denominaram essa configuração de Borderline, um estado limítrofe que se situa entre a fronteira neurótica e psicótica e pode adquirir características e sintomas de cada parte, dependendo da formação psíquica de cada um. 
Pode parecer bastante complexa toda essa teorização e de fato ela é. Compreender a fundamentação psicanalítica não é uma tarefa fácil. Preocupei-me em abordá-la de uma maneira superficial e compreensível, pois há muito o que se conhecer para entender melhor sobre cada uma dessas características. O importante a se saber é que dentro de cada manifestação psicopatológica existe uma compreensão dinâmica. Mais importante do que saber da existência dos sintomas é saber a origem de cada um deles e o que cada um deles significa. Assim, é possível traçar um plano de tratamento muito mais eficaz. Como dito anteriormente, apenas tratar o sintoma não resolve o problema. Se você apresenta tosse durante uma gripe, tomar medicações que inibem a tosse não irá solucionar o problema base: a gripe. Se você apresenta insônia, falta de apetite e humor para baixo em uma Depressão, não soluciona o problema base apenas tomar medicações que modifiquem esses sintomas. É preciso compreender e ouvir cada característica, cada sofrimento e cada subjetividade. 
Mais adiante será possível compreender melhor como cada instância mental e cada "perfil" citado acima se manifesta. Tentarei escrever sobre as principais Psicopatologias, abordando não somente a abordagem psicanalítica, mas trazendo reflexões de outras abordagens sobre cada uma delas.



sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A Psicopatologia ● Psychopathology

           O paradigma ocidental costuma dividir o homem em duas dimensões distintas. De um lado, encontra-se a instância física e material, estudada por várias áreas do conhecimento, principalmente a medicina. Do outro lado, a instância psicológica ou mental, podendo ser considerada material ou imaterial (dependendo da abordagem). Por muito tempo -e pode-se dizer que até hoje- essa separação mente-corpo esteve presente em nossas teorizações. Talvez uma das maiores dificuldades que encontramos profissionalmente seja o obstáculo em se reunir todas as especialidades, fazer uma base interdisciplinar para auxiliar uma compreensão, um estudo ou uma prática eficiente. Ao mesmo tempo, observa-se que não somente a divisão mente-corpo está presente: o próprio corpo está segmentado em várias áreas do conhecimento. Esses conhecimentos e especialidades não se comunicam, às vezes até parece que esquecemos que todas as pequenas partes constroem um indivíduo pleno.
            A verdade é que também como o corpo, o mental adoece. Mesmo que tenhamos diferenças teóricas dentro de nossa profissão, é perceptível a dificuldade que enfrentamos em desbanalizar e em tornar mais conhecidas e mais compreensíveis todos os pequenos detalhes quanto às psicopatologias e ao funcionamento mental. A "doença mental" existe há muito tempo, já foi recebida com muito preconceito e já foi motivo de barbáries inimagináveis. Hoje apesar de melhor compreendida, enfrenta a interface da banalização e frequentemente é negligenciada, mesmo precisando de bastante atenção e cuidado. 
                  O ser humano atual vivencia dores diversas. Desde o seu nascimento, está lançado em um universo de sensações e significações que vão formar seu caráter (personalidade) e vão ditar suas tendências de comportamento e pensamento. Apesar de ser mutável e amplamente dinâmico, o ser humano conta com bases mentais mais profundas e duradouras, que podem estar presentes ao longo de muitos anos, em cada passo dado. Cada ser humano é diferente, possui suas próprias "digitais" mentais. A tendência é que haja uma homeostase interna. Todos lutamos mentalmente, mesmo que inconscientemente, para mantermos o equilíbrio mental, mas mais frequente do que imaginamos, esse equilíbrio não é tão facilmente conquistado e isso traz consequências diversas às nossas condutas e pensamentos, principalmente refletidas pela maneira como "escolhemos" resolvê-las ou diminuí-las. 
                   Dependendo da força mental de cada indivíduo, geneticamente influenciada ou ambientalmente influenciada, esse desequilíbrio mental irá se manifestar de formas distintas. Se há uma perturbação da homeostase, o sistema mental irá procurar a maneira mais próxima e mais plausível para resolver o problema. Quando o indivíduo não possui um aparato interno suficiente para retornar ao equilíbrio de forma eficiente, o sistema mental procura outras maneiras desadaptadas e comumente começa a demonstrar sintomas. O sintoma nada mais é, então, que um sinal de que algo está internamente desequilibrado e que o indivíduo talvez esteja utilizando maneiras alternativas, mal adaptadas, para resolver. O mesmo ocorre com nosso organismo quando estamos infectados por um vírus. A causa interna está instalada, nosso organismo procurará a maneira mais eficaz disponível para combater essa invasão e muitas vezes observamos os sintomas como sinais de que há algo errado. Analogamente, curar os sintomas sem focar na verdadeira causa do desequilíbrio significa não dar importância para a verdadeira raiz do problema e, portanto, abrir portas para que ocorra novamente ou que volte com uma força maior. A Psicologia se preocupa com a importância em dar voz para a angústia interna causadora do desequilíbrio. Além de medicar os sintomas (quando necessário), há a enorme necessidade de se compreender a raiz do problema, escutar o sofrimento.
                Ainda amparadas pelo paradigma mente-corpo, as profissões da saúde trabalharam para teorizar e pesquisar fenômenos mentais e orgânicos, para que pudesse ser mais fácil construir instrumentos de conhecimento e consulta. O DSM é o manual estatístico mais utilizado no mundo para essa finalidade. Ele mesmo contém em sua introdução uma reflexão acerca da importância didática de se separar os transtornos orgânicos dos transtornos mentais, mas alerta para a também importante necessidade de não se tornarem excludentes, no sentido de que mente e corpo interagem a todo momento e não é produtivo e seguro promover essa separação. Transtornos Mentais e de Personalidade são os mais frequentemente estudados pela Psicologia e possuem algumas diferenças entre si. Os Transtornos Mentais são condições psicológicas normalmente caracterizadas por episódios e com uma duração mais instável, aparecendo, normalmente, a partir do final da adolescência ou início da fase adulta. Eles causam prejuízos sociais, ocupacionais e funcionais para o indivíduo e precisam estar presentes por um período de tempo variável, dependendo do transtorno. Os Transtornos de Humor, uma das categorias dos Transtornos Mentais, são assim denominados por agruparem fenômenos mentais tipicamente relacionados ao estado de humor do indivíduo. A Depressão, por exemplo, é diagnosticada a partir de avaliações e entrevistas clínicas a fim de se constatar a presença de sinais e sintomas, além de uma duração de no mínimo duas semanas, caracterizadas pela presença de um humor deprimido ou "para baixo", na maior parte do dia, todos os dias. Os Transtornos de Personalidade também trazem prejuízos semelhantes às pessoas que os portam, mas possuem algumas diferenças. Ao se falar em personalidade, toca-se em uma característica mais estável e duradoura, um padrão de comportamentos e pensamentos, também manifestando-se comumente no final da adolescência ou início da fase adulta. Essa categoria, no entanto, é mais complicada de ser observada, é mais rara e mais difícil de ser diagnosticada. Possui um caráter ego sintônico, o que quer dizer que o indivíduo dificilmente identifica seus traços e os prejuízos decorrentes deles. São patologias mais fáceis de serem estabilizadas, mas não existe uma cura permanente, como uma gripe.
                 Independente da categoria dos transtornos, é preciso ter em mente algumas reflexões antes de iniciar seus estudos. Cada fenômeno mental se caracteriza por uma angústia mal resolvida. A compreensão dessa angústia, da forma como surgiu e a forma como foi "solucionada" é um passo importantíssimo para a estabilização e melhora de prognóstico. Ao falarmos em Transtornos de Personalidade, estamos lidando com um domínio teórico que diz respeito a características possivelmente observáveis em todo ser humano, em épocas e momentos variados de suas vidas. Isso significa que a não banalização das psicopatologias implica em primeiramente compreender o que significa adoecer mentalmente, em compreender qual o limiar patológico de cada traço de personalidade ou sintoma e, principalmente, em evitar rótulos e estigmas. Ao se fazer isso, é mais fácil tomar decisões técnicas mais eficientes e conscientes, baseadas em diagnósticos diferenciais, julgamentos mais precisos e expectativas e estratégias de tratamento mais otimistas. 
                  As psicopatologias devem ser vistas como manifestações humanas de pedidos de socorro. Mais adiante será possível comentar com mais detalhes cada fenômeno especificamente. Mas pode-se finalizar essa reflexão com as  seguintes questões: quais dores seriam suficientemente grandes para causar desequilíbrios internos e quais mecanismos de solução seriam mal adaptados o suficiente para produzirem sintomas?