terça-feira, 14 de maio de 2013

Luz do amanhã

Palavras-chave: desigualdade social, potencialidades, sociedade.

A sociedade brasileira está plenamente dividida em diversos níveis socioeconômicos, raiz predominante da nossa cultura, caracterizados por diversas peculiaridades políticas, econômicas e sociais que por vezes colaboram para o distanciamento das realidades, o preconceito e a não aceitação da desigualdade, como ponto fundamental para a diversidade humana.
            Nessas raízes de desigualdades, nitidamente encontram-se problemáticas que ferem o que se tem por dignamente direito do homem. Condições de vida que não são contempladas por serviços voltados para a educação de qualidade, saúde de qualidade e oportunidades que poderiam gerar um nível de vida um pouco melhor. Assim, abrem-se as portas para a marginalização, para uma busca infinita por melhores vivências e, por um desamparo em não encontrar, na maior parte das vezes, um sucesso nessa empreitada, recorre-se aos comportamentos fora da lei, como um alívio momentâneo a qualquer necessidade, mesmo que isso signifique prejudicar o próximo.
            Realidades delicadas podem ser notadas em diversos contextos familiares, mas famílias inseridas em condições de vida extremamente complicadas tendem a experienciar diversas dificuldades no âmbito econômico, social, orgânico e mental. Dificuldades que, a longo prazo, são verdadeiros geradores de sofrimento, provocando feridas tão profundas, recheadas por sensações de desamparo, descontrole e falta de escolha. É bem sabido que a atualidade do país não conta com políticas públicas em número e eficiência suficientes para vencerem esses desafios e os que estão à margem continuam nessa situação, sem perspectivas de progresso e, muito menos, de uma mão que se estenda em auxílio.
            Por diversos motivos diferentes, o homem sofre e vivencia diversas sensações e emoções existentes. Mas por mais que os motivos variem de realidade para realidade, as sensações se repetem, tocam o íntimo de cada um e nem assim tem sido fácil perceber que há igualdade na diferença. O homem não está “treinado” a exercitar um olhar que transcenda o seu eu. É difícil aceitar que o outro se comporta e pensa de uma maneira diferente, é complicado compreender que nem sempre o mundo se realiza como se espera. Nessa luta por negar a diferença do outro, o eu se fecha e se volta para a própria realidade, supervaloriza-se. A eterna busca da própria felicidade, portanto, muitas vezes implica na recusa de se enxergar a necessidade do outro e, frente aos diversos avanços tecnológicos, a luta pelo ser e pelo ter se torna cada vez mais forte.
            A individualidade se sobressai, o social se fere. Tudo o que poderia ser construído conjuntamente é reduzido a diversas conquistas solitárias. Isso não só colabora para acentuar as diferenças, quanto para acentuar o olhar que se tem sobre as diferenças. O eu quer se fastar do que o atrasa, o que importa é buscar o infinito, mesmo que sozinho, a verdadeira filosofia do “cada um por si”. Mas assim como se observa nas teorias do desenvolvimento do ser humano, tudo o que existe na Terra é mutável, passível de evolução e carrega consigo um potencial. Esse potencial nada mais é do que uma pequena chama que, em condições favoráveis e com o auxílio de algo que está aquém, pode se tornar uma realidade. Assim, se um homem possui potencialidades ainda limítrofes, com toda a certeza seria possível torná-las realidade, com o auxílio de um desenvolvimento, muitas vezes motivado e guiado por algo ou alguém de experiência.
            Assim poderia ser lançada uma questão: se existem potencialidades, por que não voltar o olhar para o que pode ser a luz do futuro? Por uma mera questão de falta de oportunidade, que se exemplifica pelas realidades que se observam nessa sociedade, diversas potencialidades ficam no plano da inércia e, pelo movimento natural que se evidencia, tendem a se tornar chamas que se apagam, pouco a pouco, ao longo dos anos marcados pela desesperança. Aqueles, portanto, que detêm as experiências, as oportunidades e os “meios de”, poderiam, em uma ação que vise uma evolução conjunta, compartilhar essa força para facilitar o amanhã. Um amanhã que nada mais é do que um futuro progredido, enriquecido por diversos pensadores, realizadores e benfeitores.
            A partir do momento em que o eu conseguir transcender, o outro tornar-se-á também uma meta. Não adianta parafusos trabalharem sozinhos para formarem uma máquina, cada engrenagem possui sua função e, nesse funcionamento sistemático, é possível se chegar a um fim concreto e fortalecido. Assim, o exercício de voltar o olhar para o além significa solidificar as bases fundamentais para um progresso que traga benefícios para uma totalidade e não para uma pequena parte. Não é uma questão de seleção natural, de “salve-se quem puder” ou de “o mais forte sobrevive” e sim, uma questão de “duas cabeças pensam melhor que uma”, de união que leva à perfeição, de “gentileza gera gentileza”. O homem precisa enxergar que há um propósito e um ganho próprio em uma construção conjunta, em uma valorização da diversidade e, principalmente, na compreensão das limitações, que podem ser facilmente superadas pelas potencialidades.
                       
           

segunda-feira, 9 de julho de 2012

"Psicopatia", Perversão e Criminalidade ● "Psichopathy", Perversion and Criminality

       O homem não é naturalmente bom, nem naturalmente mau, mas em todos os lugares, viver de acordo com o bom é viver segundo a moral, é ser honrado. Ao passo que viver contra esse ideal, é estar sujeito à desconsideração e ao preconceito (Weil, 2011). Ser “bom”, segundo uma história etimológica, significa ser útil, aristocrático, espiritualmente nobre e ser “ruim” está relacionado ao plebeu, ao comum, ao simples (Nietzsche, 2010). Esses termos eram criados e naturalizados por pessoas de poder, que ocupavam cargos aristocráticos e baseavam-se em seus próprios interesses para separar aquilo ou aquele que poderia ser útil, daquilo ou daquele que não teria importância. Por muito tempo, essa aristocracia esteve ligada ao espiritual e à Igreja, o que indica que muitos dos valores criados há milhares de anos e enraizados até hoje nasceram a partir de pressupostos e princípios religiosos (Weil, 2011).
            Mas o homem não pode falar de bem, se não tiver pleno conhecimento de seu oposto, o mal. É justamente pela contrapartida que se faz o termo, não é possível se falar de bem, sem saber o que é mal, ao mesmo tempo em que é impossível se falar do que é claro, sem saber o que é escuro, doce, sem saber o que é salgado, liso, sem saber o que é texturizado. Existe uma esfera dicotômica dentro da genealogia da moral, influenciada por necessidades e desejos, que luta para separar o homem em completamente bom ou completamente ruim. Mas, é claro, essa separação nunca seria possível se portar-se como “ruim” não fosse um risco a todo ser que almeja ser totalmente “bom”.
            Por uma aspiração à santidade, as pessoas já chegaram a manifstar comportamentos altamente destrutivos. Flagelar-se, inflingir-se um castigo significava querer educar o corpo, dominá-lo, mortificá-lo para submetê-lo a uma ordem divina. Mas “os flagelantes acabaram por ser vistos como possuídos pelas paixões demoníacas que eles pretendiam vencer” (Roudinesco, 2008). A flagelação foi, então, comparada a um ato de devassidão: o que antes se dirigia a um ideal religioso e divino, por própria influência da Igreja, passou a ser visto como “ruim”, “demoníaco” e devasso.
            Da mesma maneira, os costumes pederastas gregos, expressos por rituais de iniciação sexual masculinos, revelavam comportamentos hoje tidos não só como pedófilos, como por incestuosos e homossexuais. Apenas mais um exemplo de comportamentos vistos como “normais” e esperados socialmente, influenciados por novos ideais e valores que acabam por taxá-los como algo próximo ao demoníaco, ao inútil, ao perverso. Relações homossexuais, não necessariamente intrafamiliares, ocorrem já há muitos séculos, marcaram a história do mundo e sempre estiveram presentes na rotina humana. Foi a partir do fortalecimento dos ideais religiosos, além da ascensão dos pressupostos científicos iluministas, que a homossexualidade passou a ser vista como promíscua e desprovida de qualquer utilidade pública e social, pois não favorecia a formação da família e, portanto, não poderia ser vista como ato cabível e desejável (Roudinesco, 2008).
            A manifestação de todos esses comportamentos indesejáveis, que vão contra o que é estabelecido como moral pela vontade dos maiores, não poderia ser vista de outra maneira, a não ser como desviante e anormal. Assim, uma união entre princípios morais e religiosos e conceitos científicos vigentes puderam, juntos, começar a criar as bases para o que hoje denomina-se psicopatologia. Aquilo que é indesejável e que se manifesta contra os ideais era, portanto, desviante, patológico e inconcebível e deveria receber um tratamento ideal: o afastamento social.
            Falando-se de pederastia, flagelação e homossexualidade, por exemplo, o termo perversão passou a integrar uma noção de degeneração ou loucura moral, e as perversões sexuais entraram no vocabulário da psiquiatria como anomalias ou aberrações da conduta sexual. Com origem no latim perversione, a perversão significa nada mais do que tornar-se perverso ou mau, corromper, depravar, desmoralizar (Ferraz, 2010), ou seja, significa estar inadequado ao estabelecido como moral, posicionar-se como “inútil”, “pobre” e “indesejável” e ser visto como mau.
            A proposta higienista, fundada a partir de ideais que valorizavam a formação da família e do homem perfeito criou costumes de discriminação e afastamento social àqueles que se portavam como indesejáveis. Loucos, criminosos, prostitutas, pobres, doentes mentais e qualquer “classe” humana tida como inútil e “ruim” era então excluída, inserida em espaços denominados asilos. Assim, era possível filtrar tudo o que manifestava a parte obscura do ser humano, como se o convívio em sociedade significasse má influência, contágio ou disseminação de algo que já não estivesse presente dentro de todos.
             Posteriormente, reformas na área da saúde mental transformaram os asilos em instituições teoricamente melhores, com tratamentos mais humanos e eficientes. Os hospitais psiquiátricos começaram a se dirigir aos “loucos” e as penitenciárias, aos criminosos. Aos “loucos infratores”, foram criados manicômios judiciais.
            As próprias penitenciárias podem ser vistas por um prisma histórico mais complexo. Muito antes de se pensar em um regime fechado de punição, o tratamento aos indesejáveis se dava de uma forma não mais perversa do que as execuções públicas. Em rituais de esquartejamentos, queimadas, enforcamento e trações à cavalo, o objetivo era castigar o corpo do sujeito, expondo-o ao público para servir de exemplo (Foucault, 2010). O show de horror, comparativamente muito pior do que os atos de flagelação, dirigiam-se ao mesmo destino: ceder o corpo às ordens divinas, castigar e mortificar para alcançar o perdão. A diferença é que a flagelação consistia em um ato pessoal de “progresso”, ao passo que as execuções penais eram impostas a terceiros. Ambas, vistas atualmente, assemelham-se ao que hoje se denomina masoquismo, sadismo e até homicídio. Observa-se, então, por trás de comportamentos tidos como desejáveis – castigar os que merecem - condutas próximas às repreensíveis: violentar aquele que violentou, impor sofrimento ao que outrora o causou, projetar agressividade naquele que a possui.
            Como afirma Beccaria (2005), “o assassinato que nos é apresentado como um crime horrível, vemo-lo sendo cometido friamente, sem remorsos”. De maneira semelhante, os atos cruéis de Auschwitz, que torturaram e executaram milhares de judeus pela crença de serem “impuros” ou pertencentes a uma “raça inferior”, demonstram-se, mais uma vez, como possibilidades de comportamentos perversos e violentos, por parte de homens “comuns”, em obediência a ordens superiores, convenções sociais ou princípios “legítimos” (Roudinesco, 2008). Ou seja, ato perverso por ato perverso, não se pode apenas olhar para o homem indesejável, o que comete crimes horrendos, buscando a dicotomização já dita anteriormente. Se estamos falando de “bem” e “mal”, cateogorizando o “mal” como símbolo de tudo o que vai contra o moralmente estabelecido, as atitudes violentas dos “normais” também se enquadrariam no simbolismo do “mal” e, portanto, ao final, tudo se resumiria a obscuridade. A verdade é que ninguém se constitui apenas por “bem” ou por “mal” e não somente os vistos como indesejáveis, loucos, pobres de espírito são capazes de cometerem atrocidades: elas são percebidas em toda parte, legítima ou ilegitimamente.
            Depois de alguns anos, o paradigma da punição passou por modificações. A punição agora se dirigia à alma e, quando envolvia morte, exigia a diminuição do sofrimento e da dor. Além disso, foram adquiridas “medidas de segurança”, que acompanham a pena e se destinam a controlar o indivíduo, neutralizar sua periculosidade, a modificar suas disposições criminosas, cessando somente após a obtenção de tais modificações (Foucault, 2010). Para isso, equipes multidisciplinares se dirigiam a invocar a loucura para justificar o ato criminoso, qualquer infração incluía a hipótese da loucura. A partir do momento em que essa faz parte daquele que a possui e que ele é única e exclusivamente responsável por sua loucura, a responsabilidade do crime é deslocada de uma sociedade problemática, para um cidadão problemático.
            O direito de punir passou de vingança de um soberano, a uma defesa da sociedade. A pessoa que comete um crime se torna um traidor da ordem social e passa a merecer a união da sociedade contra ele. Assim, os homens se vêem no direito de exercer sua violência sobre o descumpridor, não apenas a partir da liberdade limitada, mas a partir de olhares discriminatórios, exclusão social, preconceito e asco. Se a pena de morte não é legalizada, ela acaba por ocorrer de um jeito ou de outro. O criminoso que se mostra traidor está fadado à prisão perpétua, à morte de espírito. E aos “incorrigíveis”, aos quais a limitação de liberdade não seria útil, não caberia melhor estratégia a não ser eliminá-los (Foucault, 2010).
            Não é preciso ir tão longe, a violência que se vê sendo cometida há tantos séculos está ainda manifestada nas rotinas humanas, serve de solução para problemas, de artifício para algumas profissões, de condutas educativas e, até, de meios de comunicação e lazer. A humanidade não só é movida pela violência, como algo que pertence e está inerente ao ser, como se alimenta dela, utiliza-a como objeto, resposta e diversão. Iniciando nos rituais de execução pública, relatados anteriormente, como verdadeiros espetáculos do horror, que uniam populações curiosas e ávidas por vingança, passando pelos depósitos de gente, ou asilos, direcionados a transformar qualquer vida em sobrevida e mazela, chegando próximo às guerras, chacinas, torturas e genocídios, aos golpes políticos, às literaturas subversivas, ao culto dos palavrões,  à violência à mulher, idosos, crianças, homossexuais e negros, chegando finalmente ao que se vê frequentemente nos meios públicos como programas de televisão, filmes e lutas. O homem está cercado por essa violência, em menor ou maior grau, absorve, consome, interpreta e reproduz, sem nem ao menos perceber. O que acontece com o mundo? Está se aproximando ao caos da agressão ou só se demonstra, desde seus primórdios, extremamente violento?
            O que seria do sadismo se não tivesse existido Sade? Mas muito mais do que isso, o que seria de Sade, se não houvesse sua violência? Mesmo que não totalmente comprovada sua atuação, sua literatura retratava o que o público queria ver. Ao mesmo tempo em que revela os desejos, a curiosidade e as necessidades humanas, revela justamente aquilo que todos lutam para esconder, para manter entre quatro paredes. Sade é um veículo que manifesta as vontades mais profundas e obscuras humanas, mas como todo corajoso que as expressa, sofreu discriminação, isolamento social e uma obrigação ao silêncio. Mas o que seria de Sade e de sua criatividade extremamente sexual, se não houvessem pessoas para ler, deliciar-se e disseminar suas obras?
            Ao mesmo tempo, o que seria de Monsieur Verdoux se não fosse seu notável charme em suas mais perversas atitudes?  Chaplin “manipula conscientemente seu público, quer obter o riso, a emoção, o estupor” ( Susini, 2006). Os espectadores, então, permanecem felizes, realizados, talvez por assistirem um ídolo fictício, simpático, vítima do abandono social, realizando aquilo que possa ser o maior desejo de todos. A inversão chega a nível tão profundo, a ponto de levar o público a se posicionar contra a polícia, uma vez que o personagem é pego e precisa se submeter às consequências legais de seus atos. Como afirma Susini (2006), “Mas a verdade, a nossa, despojada de nossa hipocrisia, nos é mostrada através dos jornalistas ávidos de sensações e imagens”.
            Os  meios de comunicação podem ser vistos como a reprodução de desejos e necessidades de quem a produz, unida ao que o público deseja ver. É um veículo de dupla significação, pois ao mesmo tempo em que se utiliza dos desejos dos alvos para se realizar, alimenta-os e cria desejos mais profundos. A partir disso, fica clara  a estratégia da mídia em divulgar e reproduzir todo tipo de violência. Não se trata, necessariamente, de uma comunicação perversa, trata-se de um trabalho de pesquisa, que ganha sua notoriedade manifestando exatamente o que quer ser visto. Ou seja, se o que se expressa é violência e, ao mesmo tempo, é o que se consome e assiste, a mídia nada mais é do que um meio de expressão da violência que existe em todos, que quer ser manifesta, que quer ser vista, mas por algum motivo precisa estar no mundo da fantasia, do irreal, do ilusório.
            O que há em comum, portanto, entre gregos pederastas, aristocratas sádicos, líderes de guerra, idealizadores de genocídios, políticos corruptos, Sade, Monsieur Verdoux, Hannibal, “Chico Picadinho” e todo o resto da sociedade que, de alguma maneira, admira, observa, assiste e procura tudo isso? Não é preciso criar nomes ou rótulos para se referir ao ser humano. Está claro e exposto que todos possuem em comum o desejo pela violência, mas a partir de conceitos morais, criados e enraizados já há tanto tempo, essa agressividade precisa ficar velada, escondida e se manifesta apenas em momentos oportunos. De maneira análoga à visão da loucura, olhando de perto todo ser humano, ao final não teríamos mais sociedade “normalmente” construída. Acabaríamos por isolar socialmente todos aqueles que correm o risco de irem de encontro com as leis morais, mas ao final, perceberia-se exatamente o que conta “O alienista” (Assis, 1998), a inversão de um mundo comum, público, com rotinas usuais, a um mundo perverso, violento, trancafiado e isolado. Ou seja, observando detalhadamente o caráter humano, chegaria-se na descoberta de que todos, sem exceção, correm risco de passarem ao ato, de se mostrarem violentos, de manifestarem seus mais profundos desejos e, em palavras mais concretas, de cometerem crimes.
            Partindo desse pressuposto puramente estatístico, o mesmo que acaba por taxar como louco aquele que se comporta e percebe o mundo de maneira “inusual”, o mesmo pode ser questionado quanto ao que se denomina Psicopatia. Uma “doença do caráter”, que acomete mais homens do que mulheres, um padrão de comportamentos frios, calculistas e sem consciência, vindos de uma pessoa carente de empatia, manipuladora e cruel (Silva, 2008) ou um rótulo mal utilizado para se referir a um ser humano, com dores e sofrimentos intensos, que acabam por “passar ao ato” a partir de histórias e significações complexas, traumáticas e aterrorizantes?
            Se comportamentos tidos como psicopáticos ou próprios de um Transtorno de Personalidade Antissocial  referem-se a uma ausência de consciência, poderíamos dizer que o mundo se comporta inconscientemente há séculos? O que significa uma “doença do caráter”? Resume-se a um conjunto de comportamentos que vão contra o moralmente estabelecido? E de quem é essa moral? A quem pertence, quem a criou? Por que ver o que não aceita a moral tal como ela é como “doente” ao invés de ver o que se esforça para conter sua própria natureza em prol de regras e costumes artificialmente criados? Se os comportamentos frios e calculistas se referem a utilizar o outro em prol das próprias necessidades, em pleno 2012 seria possível, portanto, realizar uma mega ação diagnóstica, que transformaria o mundo num verdadeiro hospício a céu aberto. Nunca se percebeu sociedade tão narcisista quanto atualmente, que luta para valorizar o próprio corpo e os próprios bens e, automaticamente, desconsidera o outro. Ou seja, nesse continuum narcisista, que visa a própria felicidade, promoção e bem-estar a qualquer custo, o outro acaba ficando em segundo plano e existe um risco de se comportar friamente. E, finalmente, até mesmo nos atos mais perversos, cometidos pelos infelizes rotulados “psicopatas” ou por pessoas “normais”, vê-se um nível de empatia enorme. Utilizar-se do outro para prazer próprio significa pesquisar seus desejos e necessidades, alcançá-lo a partir disso, manipulá-lo, persuadí-lo. Não existe nenhuma outra forma de se perceber o que o outro deseja a não ser exercitando uma poderosa empatia.
            A Psicopatia, assim como os conceitos de “bem” e “mal”, são termos criados pelo homem, a partir da necessidade de se categorizar algo que precisa ser evitado, visto, aceito ou modificado. É uma invenção que visa colocar em palavras tudo aquilo que parece inaceitável e, novamente, realiza-se a manobra de projeção da culpa e responsabilidade para aquele que porta essa condição. A violência é um ciclo, se vivenciada em algum momento da vida, é capaz de ser assimilada, aprendida e, posteriormente, a qualquer momento, reproduzida, jogada para fora para perder seu poder interno destrutivo. O homem vivencia variados tipos de violência ao longo de toda a sua existência, em graus diversificados, portanto, está bem treinado para reproduzi-la quando for necessário. Não somente é violento aquele que invade o espaço do outro, priva-o de seus direitos à vida, limita sua existência, arranca-lhe seus bens ou, de forma geral, comporta-se contra o que lhe é solicitado socialmente. Violento é qualquer homem que, em prol de suas próprias necessidades, deseja, planeja, comete e verbaliza coisas que causem sofrimento. O policial agressivo que tortura o suspeito, o político corrupto que não sabe lidar com tanto poder, a mãe nervosa que espanca o filho, o professor autoritário que limita a criatividade do aluno, o marido machista que submete a esposa às suas regras, o colega de classe frustrado, que precisa submeter os mais fracos a seu próprio sofrimento, o lutador venerado nacionalmente, que se enriquece a cada “batalha” vencida e o cidadão que, de alguma forma, tira proveito de situações violentas para própria diversão ou prazer. São tantos casos comuns e rotineiros e a mesma violência sendo passada para frente, ininterruptamente, num ciclo vicioso.
            Após uma vasta análise da genealogia da moral, que tem formado condutas e construído regras e valores, além de uma vasta análise dos episódios de violência tão presentes em nossa história da civilização até atualmente, pode-se chegar a uma conclusão: o homem possui desejos profundos, mas luta para se encaixar nas convenções diariamente e, no meio dessa empreitada, sempre há alguma maneira de “fugir” dessa angústia. O desejo à violência, então, se manifesta a partir de atitudes rotineiras e imperceptíveis. Mas, quando um ato de extrema violência ganha notoriedade pública, o mecanismo de projeção se faz útil. Tudo aquilo que se deseja fazer, mas é reprimido, visto com olhos críticos e castradores, projeta-se no outro que fez a passagem, que atuou por algum motivo, e então a sociedade está “salva” de mais uma responsabilidade, que agora encontra-se plenamente projetada no grande culpado e responsável pelo sofrimento humano. A violência é um enorme ciclo vicioso que precisa ser interrompido. Se se deseja modificá-la, precisa-se estar em contato com a própria violência, compreendê-la, questioná-la. Perceber o quanto somos agressivos e o quanto desejamos isso não significa liberar-se à natureza e iniciar repertórios de comporamentos destrutivos e ameaçadores. A percepção da violência é um primeiro passo para romper e prevenir que esse ciclo progrida, evitando projeções, discriminações, isolamentos sociais, vistas grossas, negligência e, consequentemente, visando relações sociais mais humanas, pacíficas e compreensivas. Se realmente existe “Psicopatia”, que ela seja vista como uma maneira de viver, uma série de significações extremamente doídas, recheadas por experiências de sofrimento que precisam ser ressignificadas. Talvez, um grande avanço na quebra desse ciclo seja perceber, de uma vez por todas, que até mesmo o “mal” precisa ser compreendido, pois esse mesmo “mal” faz parte todos nós.

BIBLIOGRAFIA
Assis, M. (1998) O alienista. Porto Alegre: L&PM.
Beccaria, C (2005). Dos delitos e das penas. 5ª edição. Martins Fontes     
Ferraz, F (2010) Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Foucault, M. (2010) Vigiar e Punir: a história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes
Nietzsche, F. (2010) Genealogia da Moral. São Paulo: Madras
Roudinesco. E. (2008) A parte obscura de nós mesmos. São Paulo: Zahar
Susini, M-L (2006) O autor do crime perverso. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
Weil, E. (2011) Filosofia Moral. São Paulo: É Realizações

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Psicopatologia II : uma introdução psicanalítica ● Psychopathology II: an introduction to Psychoanalysis


O modelo topográfico criado por Freud propõe que o sistema mental se divide em três instâncias. A porção inconsciente é composta por traços mnêmicos que não podem vir às porções sub-consciente e consciente porque existem censuras. O inconsciente diz respeito a um lugar psíquico não material, caracterizado por desejos e pulsões recalcadas. O sistema pré-consciente, que se situa entre o inconsciente e o consciente pode "acessar" e manifestar conteúdos inconscientes que são "liberados" pela censura. A parte consciente é uma parte sensorial e perceptiva, diz respeito à experiência de cada um, ao que é plenamente acessível, mas só demonstra uma parte dos processos psíquicos.
Como já dito anteriormente no outro post, temos a tendência a tentarmos manter a homeostase interna. Dessa maneira, munimo-nos frequentemente de mecanismos de defesa que visam segurar e impedir que conteúdos, desejos e pulsões inconscientes se manifestem. Esses mecanismos de defesa são inconscientes, ou seja, muitas vezes realizamos sem termos plena consciência; e são responsáveis pela manifestação de sintomas e comportamentos.
Posteriormente, Freud teorizou sobre outras três instâncias que não renunciam as outras, só as complementam. O Id, por exemplo, é análogo ao inconsciente, constituído pelos desejos e pulsões. É uma parte obscura e impenetrável da personalidade. O Ego é responsável por moderar o Id, ele constitui a censura, controlando os interesses do sujeito. O Ego é construído a partir de várias interações entre o indivíduo e o meio e as consequentes internalizações de significados, valores, interpretações. Ele é composto por uma parte consciente, que é responsável pela atividade do ser, pela tomada de decisões e integração de dados perceptivos. Sua parte inconsciente é responsável pelos mecanismos de defesa supracitados, que controlam e neutralizam os desejos do Id. O Superego também é formado por processos de identificação, assim como o Ego. Apesar de ser, em sua maioria, inconsciente, sua parte consciente cuida da consciência moral e das funções de auto-observação, ditando atitudes e comportamentos.
A partir dessa teoria, portanto, é possível se pensar em um enorme movimento psíquico que pode pender para o desequilíbrio. De um lado, encontram-se os desejos e pulsões inconscientes, que lutam para serem manifestados e realizados, de outro lado, Ego e Superego lutam para neutralizar e equilibrar esses desejos, barrando-os e impedindo que sejam manifestados. A ansiedade produzida por esse movimento constitui o caráter neurótico que a maioria de nós apresenta. 
Diante disso, o que caracteriza, então, a manifestação dos sintomas e a consequente configuração de uma psicopatologia?
Dependendo da maneira como cada instância será formada, a partir  das relações objetais vivenciadas pelo indivíduo, das castrações promovidas pelos pais, das soluções dos conflitos edipianos, da ferida narcísica, das identificações e internalizações e das consequentes formas que o indivíduo encontrará de se manifestar no meio, relacionar-se, pensar e comportar-se, seu sistema psíquico poderá apresentar conflitos que colaborarão para manifestações de sintomas. 
A manifestação de sintomas psicóticos, por exemplo, nada mais é do que uma falha do Ego e do Superego em barrar os desejos e pulsões do Id. O indivíduo deixa as fantasias e os devaneios se manifestarem e ocorre uma dificuldade de diferenciação entre o real e o irreal. Sintomas como delírios - alteração de pensamento- e alucinações - alteração da percepção- são dois dos principais observados. 
A partir de outro referencial, no entanto, existem configurações mentais que não se caracterizam como neuróticas, nem psicóticas. Os teóricos denominaram essa configuração de Borderline, um estado limítrofe que se situa entre a fronteira neurótica e psicótica e pode adquirir características e sintomas de cada parte, dependendo da formação psíquica de cada um. 
Pode parecer bastante complexa toda essa teorização e de fato ela é. Compreender a fundamentação psicanalítica não é uma tarefa fácil. Preocupei-me em abordá-la de uma maneira superficial e compreensível, pois há muito o que se conhecer para entender melhor sobre cada uma dessas características. O importante a se saber é que dentro de cada manifestação psicopatológica existe uma compreensão dinâmica. Mais importante do que saber da existência dos sintomas é saber a origem de cada um deles e o que cada um deles significa. Assim, é possível traçar um plano de tratamento muito mais eficaz. Como dito anteriormente, apenas tratar o sintoma não resolve o problema. Se você apresenta tosse durante uma gripe, tomar medicações que inibem a tosse não irá solucionar o problema base: a gripe. Se você apresenta insônia, falta de apetite e humor para baixo em uma Depressão, não soluciona o problema base apenas tomar medicações que modifiquem esses sintomas. É preciso compreender e ouvir cada característica, cada sofrimento e cada subjetividade. 
Mais adiante será possível compreender melhor como cada instância mental e cada "perfil" citado acima se manifesta. Tentarei escrever sobre as principais Psicopatologias, abordando não somente a abordagem psicanalítica, mas trazendo reflexões de outras abordagens sobre cada uma delas.



sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A Psicopatologia ● Psychopathology

           O paradigma ocidental costuma dividir o homem em duas dimensões distintas. De um lado, encontra-se a instância física e material, estudada por várias áreas do conhecimento, principalmente a medicina. Do outro lado, a instância psicológica ou mental, podendo ser considerada material ou imaterial (dependendo da abordagem). Por muito tempo -e pode-se dizer que até hoje- essa separação mente-corpo esteve presente em nossas teorizações. Talvez uma das maiores dificuldades que encontramos profissionalmente seja o obstáculo em se reunir todas as especialidades, fazer uma base interdisciplinar para auxiliar uma compreensão, um estudo ou uma prática eficiente. Ao mesmo tempo, observa-se que não somente a divisão mente-corpo está presente: o próprio corpo está segmentado em várias áreas do conhecimento. Esses conhecimentos e especialidades não se comunicam, às vezes até parece que esquecemos que todas as pequenas partes constroem um indivíduo pleno.
            A verdade é que também como o corpo, o mental adoece. Mesmo que tenhamos diferenças teóricas dentro de nossa profissão, é perceptível a dificuldade que enfrentamos em desbanalizar e em tornar mais conhecidas e mais compreensíveis todos os pequenos detalhes quanto às psicopatologias e ao funcionamento mental. A "doença mental" existe há muito tempo, já foi recebida com muito preconceito e já foi motivo de barbáries inimagináveis. Hoje apesar de melhor compreendida, enfrenta a interface da banalização e frequentemente é negligenciada, mesmo precisando de bastante atenção e cuidado. 
                  O ser humano atual vivencia dores diversas. Desde o seu nascimento, está lançado em um universo de sensações e significações que vão formar seu caráter (personalidade) e vão ditar suas tendências de comportamento e pensamento. Apesar de ser mutável e amplamente dinâmico, o ser humano conta com bases mentais mais profundas e duradouras, que podem estar presentes ao longo de muitos anos, em cada passo dado. Cada ser humano é diferente, possui suas próprias "digitais" mentais. A tendência é que haja uma homeostase interna. Todos lutamos mentalmente, mesmo que inconscientemente, para mantermos o equilíbrio mental, mas mais frequente do que imaginamos, esse equilíbrio não é tão facilmente conquistado e isso traz consequências diversas às nossas condutas e pensamentos, principalmente refletidas pela maneira como "escolhemos" resolvê-las ou diminuí-las. 
                   Dependendo da força mental de cada indivíduo, geneticamente influenciada ou ambientalmente influenciada, esse desequilíbrio mental irá se manifestar de formas distintas. Se há uma perturbação da homeostase, o sistema mental irá procurar a maneira mais próxima e mais plausível para resolver o problema. Quando o indivíduo não possui um aparato interno suficiente para retornar ao equilíbrio de forma eficiente, o sistema mental procura outras maneiras desadaptadas e comumente começa a demonstrar sintomas. O sintoma nada mais é, então, que um sinal de que algo está internamente desequilibrado e que o indivíduo talvez esteja utilizando maneiras alternativas, mal adaptadas, para resolver. O mesmo ocorre com nosso organismo quando estamos infectados por um vírus. A causa interna está instalada, nosso organismo procurará a maneira mais eficaz disponível para combater essa invasão e muitas vezes observamos os sintomas como sinais de que há algo errado. Analogamente, curar os sintomas sem focar na verdadeira causa do desequilíbrio significa não dar importância para a verdadeira raiz do problema e, portanto, abrir portas para que ocorra novamente ou que volte com uma força maior. A Psicologia se preocupa com a importância em dar voz para a angústia interna causadora do desequilíbrio. Além de medicar os sintomas (quando necessário), há a enorme necessidade de se compreender a raiz do problema, escutar o sofrimento.
                Ainda amparadas pelo paradigma mente-corpo, as profissões da saúde trabalharam para teorizar e pesquisar fenômenos mentais e orgânicos, para que pudesse ser mais fácil construir instrumentos de conhecimento e consulta. O DSM é o manual estatístico mais utilizado no mundo para essa finalidade. Ele mesmo contém em sua introdução uma reflexão acerca da importância didática de se separar os transtornos orgânicos dos transtornos mentais, mas alerta para a também importante necessidade de não se tornarem excludentes, no sentido de que mente e corpo interagem a todo momento e não é produtivo e seguro promover essa separação. Transtornos Mentais e de Personalidade são os mais frequentemente estudados pela Psicologia e possuem algumas diferenças entre si. Os Transtornos Mentais são condições psicológicas normalmente caracterizadas por episódios e com uma duração mais instável, aparecendo, normalmente, a partir do final da adolescência ou início da fase adulta. Eles causam prejuízos sociais, ocupacionais e funcionais para o indivíduo e precisam estar presentes por um período de tempo variável, dependendo do transtorno. Os Transtornos de Humor, uma das categorias dos Transtornos Mentais, são assim denominados por agruparem fenômenos mentais tipicamente relacionados ao estado de humor do indivíduo. A Depressão, por exemplo, é diagnosticada a partir de avaliações e entrevistas clínicas a fim de se constatar a presença de sinais e sintomas, além de uma duração de no mínimo duas semanas, caracterizadas pela presença de um humor deprimido ou "para baixo", na maior parte do dia, todos os dias. Os Transtornos de Personalidade também trazem prejuízos semelhantes às pessoas que os portam, mas possuem algumas diferenças. Ao se falar em personalidade, toca-se em uma característica mais estável e duradoura, um padrão de comportamentos e pensamentos, também manifestando-se comumente no final da adolescência ou início da fase adulta. Essa categoria, no entanto, é mais complicada de ser observada, é mais rara e mais difícil de ser diagnosticada. Possui um caráter ego sintônico, o que quer dizer que o indivíduo dificilmente identifica seus traços e os prejuízos decorrentes deles. São patologias mais fáceis de serem estabilizadas, mas não existe uma cura permanente, como uma gripe.
                 Independente da categoria dos transtornos, é preciso ter em mente algumas reflexões antes de iniciar seus estudos. Cada fenômeno mental se caracteriza por uma angústia mal resolvida. A compreensão dessa angústia, da forma como surgiu e a forma como foi "solucionada" é um passo importantíssimo para a estabilização e melhora de prognóstico. Ao falarmos em Transtornos de Personalidade, estamos lidando com um domínio teórico que diz respeito a características possivelmente observáveis em todo ser humano, em épocas e momentos variados de suas vidas. Isso significa que a não banalização das psicopatologias implica em primeiramente compreender o que significa adoecer mentalmente, em compreender qual o limiar patológico de cada traço de personalidade ou sintoma e, principalmente, em evitar rótulos e estigmas. Ao se fazer isso, é mais fácil tomar decisões técnicas mais eficientes e conscientes, baseadas em diagnósticos diferenciais, julgamentos mais precisos e expectativas e estratégias de tratamento mais otimistas. 
                  As psicopatologias devem ser vistas como manifestações humanas de pedidos de socorro. Mais adiante será possível comentar com mais detalhes cada fenômeno especificamente. Mas pode-se finalizar essa reflexão com as  seguintes questões: quais dores seriam suficientemente grandes para causar desequilíbrios internos e quais mecanismos de solução seriam mal adaptados o suficiente para produzirem sintomas? 


   

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O mal que habita em todos nós: reflexão sobre a psicopatia • The evil that dwells in us: reflecting on the psychopathy




Quantas vezes não nos deparamos com notícias escandalosas sobre crimes brutais cometidos das mais variadas maneiras, contra as mais variadas pessoas? Crimes que geram desconforto nacional e internacional, que abrem discussões em diversas esferas, magoam muita gente, impressionam, chocam, causam repúdio, julgamentos, movimentos de luta, perdas de sono...Surgem perguntas perturbadoras que não possuem respostas imediatas, como por que aquela pessoa foi capaz de fazer tal atrocidade, o que a levou a fazer isso, por que aquela vítima sofreu e qual a melhor vingança a ser feita.
Por outro lado, longe de um acontecimento que choca uma nação inteira, estão movimentos de divulgação da violência de uma maneira massiva, manifestados por veículos de comum acesso, perpassando nossos cotidianos sem ao menos termos noção e reflexão sobre eles. Querendo ou não, é através desses veículos que formamos opiniões, adquirimos uma parte de nossos conhecimentos, fundamos valores e aprendemos com experiências alheias. É também a partir deles que organizamos pensamentos hostis todas as vezes em que vemos notícias como as mencionadas anteriormente.
O ser humano é movido por violência. Ela está dentro de nós e é assim que ela é manifestada. Seja sentindo prazer ao assistir lutas pela televisão, ou ao praticá-las na vida real, seja indo ao cinema assistir sequências de filmes sangrentos, seja acompanhando o julgamento de uma pessoa que aparentemente merece todo o mal do mundo por ter feito mal a outra pessoa. De uma maneira ou de outra, aprendemos a ser assertivos desde pequenos, convivemos com várias fontes de agressão e violência, nos mais variados graus, e de certa forma somos capazes até de termos diversão a partir dela. Há até como falarmos da violência como uma característica inata, temos a capacidade de usá-la para nos defendermos, para defendermos um filho ou um familiar, observamos sua presença em comportamentos de outras espécies, ela está presente no nosso cotidiano, em nossas ações e em nossos pensamentos, de um jeito ou de outro.
A partir disso, é possível também se pensar acerca das capacidades que cada indivíduo possui de controlar sua própria violência, além do que essa violência significa para cada um, como ela se desenvolveu e em que esteve envolvida ao longo das experiências. Cada um de nós possui uma formação de personalidade e tendências desde o nascimento, nossos laços familiares, nossas convivências e aprendizados, nossas impressões e experiências boas e ruins, significações que fazemos acerca de nós mesmos e dos outros, formações de identidade, identificações, todos esses processos estão envolvidos intimamente com a forma como construímos esse conceito em nossa mente. Há crianças que vivenciam os mais variados tratamentos, desde a negligência e a violência explícita, física, emocional e sexual, até a superproteção e o fornecimento de um senso de onipotência. Se tudo isso acontece e favorece a formação de um ser em crescimento, além de basear significações que acompanham cada passo ao longo da vida, é plausível se imaginar que vários indivíduos possuem universos de experiências, sensações e sentimentos que organizarão todas as suas condutas dali para frente e isso pode estar completamente ligado ao controle emocional e à ação violenta.
Ao se falar em Psicopatia ou Transtorno de Personalidade Antissocial, há várias referências teóricas que trazem respostas prontas e fechadas sobre o tema. As mais utilizadas no meio médico e psicológico estão caracterizadas em manuais diagnósticos que possuem pouquíssima informação detalhada sobre cada sintoma procurado, o que faz com que a lista de critérios diagnósticos possam ser facilmente encaixados em vários indivíduos, trazendo vieses e banalizações, além limitações para o campo profissional. Exemplos de profissionais da saúde que seguem fielmente esses manuais há aos montes, que publicam livros sensacionalistas, dedicando páginas e mais páginas a um detalhamento de traços negativos e pesados sobre pessoas que portam tais transtornos. Esses meios de informação também colaboram para as reações tipicamente hostis que percebemos socialmente, cada vez que um caso ou acontecimento do gênero é divulgado.
Por trás de uma pessoa que comete um crime, está uma subjetividade gigantesca, composta por diversos eventos passados que colaboraram para a formação de seu caráter. Por mais que nós, psicólogos, precisemos usar as convenções estatísticas para Transtornos Mentais e de Personalidade para guiarmos nossas ações profissionais no trato desses fenômenos, há uma realidade complexa vital em cada um desses casos que impede que se faça uma separação desses indivíduos em relação aos outros e desabilita a possibilidade de se descrever seus atos e sua moral com parágrafos que acabam por denegrir suas reputações, como se pudéssemos reduzir todo um ser e uma vida a uma figura animalesca, imperfeita, monstra e fria, capaz de causar o mal para o próximo.
Ao longo desse semestre precisei desenvolver leituras e estudos acerca do tema e precisei fazer uma vasta e longa avaliação de personalidade de um paciente de um grupo de atendimento do qual faço parte na minha universidade, para finalizar uma parte do meu curso e poder finalmente ter meu título de Bacharel. É impressionante encontrar que por trás de um rótulo que facilmente existiria em qualquer outro local de atendimento, há uma configuração mental tão específica e tão complexa, que só as ferramentas que tive a oportunidade de utilizar possibilitariam essa descoberta (Método de Rorschach). Uma entrevista diagnóstica crua, que busca os sintomas ridiculamente traçados nos manuais diagnósticos ignora a subjetividade de cada  sinal demonstrado pelo indivíduo e automaticamente negligencia o que realmente importa. A avaliação da dinâmica do indivíduo, por outro lado, compreende toda a sua estrutura, suas tendências, suas potenciais emoções vividas, pontos de recursos e demandas, traços patológicos ou não.
Essa pessoa avaliada traz consigo um histórico de extremo sofrimento e dor, com uma vivência confusa de suas emoções e um evidente significado em torno das relações interpessoais e emoções que foi adquirido ao longo de suas próprias experiências. O que mais se poderia esperar de uma pessoa que provavelmente vivenciou alguma violência extrema quando mais nova, não teve a oportunidade de resignificá-la e possivelmente continuou imersa em um contexto que favoreceu a formação de um conceito um tanto distorcido acerca da verdadeira maneira de se aproximar de outra pessoa, de como manter relações pacíficas e de como controlar as emoções? Nessa configuração, é totalmente plausível se esperar que haja reações violentas e destrutíveis, pois essa foi a linguagem adquirida ainda em tenra idade e há um sofrimento muito intenso envolvido, que marca fortemente e definitivamente a existência daquela pessoa, influenciando sua auto-imagem ao longo de sua vida. 
O objetivo aqui não é manifestar opiniões favoráveis às atitudes violentas e criminosas que vemos frequentemente na mídia. Sabemos das obrigações de cada cidadão e sabemos que temos leis a cumprir e valores morais e manter e passar de geração para geração. Para toda ação maléfica que vai de encontro com a lei deve existir uma contrapartida justa, uma punição adequada e uma reestruturação e recuperação do ser que errou. Mas é preciso questionar e ir mais além. Por trás daquele monstro que friamente violentou uma mulher, existe um ser humano que está em intenso sofrimento e precisa de atenção.
Afinal de contas, ao sermos notificados de crimes cruéis como esses, damos o direito a nós mesmos de pensarmos de forma agressiva e de querermos uma vingança imediata. É comum ver movimentos de todas as partes, com julgamentos, xingamentos, motivações destrutivas diversas. Estamos pensando e agindo como a pessoa que cometeu o crime e nem ao menos estamos vendo. Não porque também somos monstros e porque somos insensíveis para percebermos isso. Mas porque também somos seres humanos, que legitimamente ou ilegitimamente podemos manifestar problemas com nossas tolerâncias e emoções.
É possível encontrarmos as respostas para aquelas várias perguntas se olharmos para dentro de nós mesmos e percebermos que somos todos muito parecidos, cada um em sua especificidade e riqueza interna.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Piaget e Consciência Moral: por que estamos nos violentando? • Piaget and Moral Conscience: why are we violating ourselves?



       
            Para Piaget (1932), as regras morais se transmitem de geração para geração e se mantêm graças ao respeito que os indivíduos mantêm por ela, ou seja, a criança dificilmente desenvolverá uma consciência autônoma, ela terá o apoio e aprendizado de personalidades superiores. Esses deveres se tornam obrigatórios porque emanaram de indivíduos respeitados, não por causa de seus conteúdos específicos.  Piaget separou as interações sociais em dois tipos: a coação social se caracteriza por uma relação entre dois ou mais indivíduos, em que se haja um elemento de autoridade ou prestígio. A cooperação social se caracteriza por uma relação entre dois ou mais indivíduos, que acreditam serem similares, ou seja,  não há elementos de autoridade entre eles, são relações entre pares. O respeito unilateral é a primeira forma de respeito que surge no desenvolvimento do ser humano, e se constitui nas relações de coação social, como relaçoes estabelecidas entre crianças e seus pais, ou com outros adultos significativos para elas. A criança atribui um grande valor às normas, opiniões e valores desses adultos, imitando-os e adotando-os (Piaget, 1941).
             É a partir do respeito unilateral que outras formas de respeito são possíveis, como o respeito mútuo, quando os indivíduos se atribuem reciprocamente valores equivalentes, como podem ser vistos em relações sociais cooperativas, momento em que o indivíduo percebe o potencial para mutação das regras e percebe que ele mesmo pode construír seus valores, dando início à Autonomia Moral. O indivíduo se torna capaz de refletir sobre as hipóteses e de estabelecer ideais de igualdade, justiça, solidariedade e liberdade, que poderão permear a consciência para suas ações. É a partir do respeito mútuo entre personalidades autônomas que seria possível a diversidade.
            No estudo feito por Larissa Machado de Souza Barroso (2000), que caracterizou sua dissertação de mestrado, e tem como título: As ideias das crianças e dos adolescentes sobre seus direitos: um estudo evolutivo à luz da teria Piagetiana, é possível se estabelecerem relações entre seus achados e a teoria de Piaget sobre a Consciência Moral, além de ser possível analisar, também relacionalmente, alguns conceitos fundamentais propostos por ele. Em seu trabalho, Barroso (2000) analisou como crianças e adolescentes de variadas idades interpretavam situações diversas que questionam os Direitos Humanos e quais soluções eram propostas por eles. Observou-se que crianças muito pequenas utilizavam-se de situações muito concretas, presentes em seu cotidiano, para justificar seus motivos para interpretar as situações como erradas, além de proporem como solução estratégias muito situacionais e imediatas, não conseguindo perceber as consequências, também prejudiciais, que suas soluções poderiam gerar. Como por exemplo, em uma situação de maus tratos exposta, crianças muito novas conseguiam conceber como uma situação muito possível de ocorrer, inclusive relatando experiências próprias vivenciadas, e davam como solução estratégias como “fugir de casa” ou “conversar com a mãe” ou com a vizinha que escutava o choro da criança ao ser violentada pelo pai. Crianças de idade mais avançada, por outro lado, tinham uma maior capacidade argumentativa, relatavam experiências próprias e outras vistas em meios de comunicação para justificarem suas análises e conseguiram propor estratégias mais conscientes e abrangentes de solução. Ou seja, foi possível perceber uma maior capacidade de notar que as situações caracterizavam um descumprimento de deveres, ou obrigações,  o que poderia ser teorizado por Piaget como o início de uma Autonomia Moral. Existe a capacidade de perceber como atitudes erradas, que vão contra alguma regra, propondo soluções que fogem do imediatamente perceptível, como as crianças mais novas. Já para os adolescentes, um terceiro nível de compreensão das situações, a idéia de direito está mais bem consolidada, separando direitos de deveres e apontando formas mais eficazes de defesa aos casos de violação, são capazes de observarem as necessidades coletivas, ao invés da meramente individual, além de questionarem ideais estabelecidos, como os de justiça, igualdade, respeito, etc., caracterizando o que Piaget chamaria de uma Consicência Moral bem consolidada.
            Tendo em vista o conceito de adaptação proposto por Piaget, em que no processo de assimilação, o indivíduo se utiliza dos recursos internos já existentes para o retorno ao equilíbrio, é possível se pensar que as crianças mais novas, analisadas por Barroso (2000), além de não terem uma Consciência Moral muito bem consolidada, possuem ainda um repertório pequeno de recursos e estruturas mentais para lidar com novas situações, como as propostas pelo estudo feito. É a partir disso que crianças pequenas, situadas na fase sensório-motor, podem entrar no processo de acomodação, com a consolidação de novas estratégias e mecanismos de enfrentamento e, consequentemente, retornarem ao equilíbrio. Já as crianças citadas como mais capazes de analisar a situação de forma mais geral, tendo consciência dos deveres e conseguindo apontar como soluções, estratégias menos focadas na resolução imediata e concreta, pode-se dizer que se situam na fase das operações concretas, com um crescente incremento do pensamento lógico, com assimilação menos egocêntrica e mais realista, caracterizada por atitudes mais críticas. O terceiro nível, comporto por adolescentes, compreende a fase das operações formais, momento em que é possível formar esquemas conceituais mais abstratos, pautados em ideais de amor, justiça, democracia, etc, e realizar operações mentais formalmente mais lógicas. É possível questionar sistemas sociais e propor novos códigos de conduta (Rappaport, 1981).
            Se o Bullying envolve atos, palavras ou comportamentos prejudiciais, intencionais e repetitivos direcionados a uma pessoa, causados por uma ou mais pessoas, com o objetivo de humilhar, expor ao ridículo, acusar, excluir e prejudicar (Middelton-Moz & Zawadski, 2007), é possível se concluir que todos esses comportamentos caracterizam um descumprimento aos Direitos Humanos, um corte ao respeito mútuo e uma má consolidação da Consciência Moral. Se essa forma de intimidação está presente em condutas nas mais variadas faixas etárias e pode ser vista também em outros contextos que não somente o escolar, pergunta-se: o que acontece no processo de aquisição da Autonomia Moral, envolvendo todas as fases de assimilação e o consequente posicionamento em etapas piagetianas, para que a sensibilidade a esses ideias e valores esteja prejudicado? Se o indivíduo adquire sua inteligência e suas capacidades ao longo de uma vasta interação social (Rappaport, 1981), e, além disso, desenvolve outras formas de respeito a partir do respeito unilateral em relações sociais de coação (com os pais ou adultos significativos), em que tipo de relações esse mesmo indivíduo está inserido ao longo de seu desenvolvimento, que não estão formando ideais mais fortes, abrindo possibilidades para comportamentos agressivos e violentos, que desrespeitam os direitos do próximo? Se o Bullying escolar envolve crianças ainda na fase das operações concretas e que portanto, ainda podem passar por etapas de novas assimilações, é possível se pensar que uma intervenção eficaz pode trazer novas significações e soluções para essas crianças, formando novos valores e compreendendo melhor as noções de direitos e deveres, inclusive de respeito mútuo. E se o Bullying escolar envolve adolescentes que potencialmente se situam na fase das operações formais? Como é possível provocar modificações na visão crítica e em códigos de conduta já estabelecidos, para que atitudes agressivas e violentas não voltem a ocorrer? 

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Uma abordagem centrada no aluno, estratégia para prevenção da violência escolar- análise e reflexão da teoria de Carl R. Rogers. • The student-centered learning, a strategy to prevent Bullying.






            O presente artigo tem por objetivo analisar a obra de Carl R. Rogers intitulada “Tornar-se pessoa”, promovendo reflexões e levantando estratégias a um ensino voltado para a liberdade do aluno, focada em sua experiência e aberta ao questionamento pessoal. Uma maneira a permitir o crescimento efetivo, individual e em grupo, promovendo a consciência e compreensão mútuas e prevenindo a soberania da violência e competição.

            Rogers inicia sua obra expondo experiências pessoais que o levaram a teorizar e colocar em prática sua visão de processo terapêutico ideal e, posteriormente, construiu associações com o contexto escolar, transpondo a terapia focada no cliente ao ensino focado no aluno e, felizmente, observou os mesmos excelentes e duradouros resultados. Antes de tudo, a teoria rogeriana se pauta no objetivo de dar liberdade ao cliente ou ao aluno de se expressar conforme sua própria consciência de sofrimento e/ou demanda, constituindo em uma técnica que não visa somente a exposição ativa de um “detentor do saber” a um aluno/cliente que se posiciona passivamente e absorve tudo o que lhe é imposto. Ao contrário, a técnica diz respeito a abrir um espaço para que seja comunicado pelo aluno ou cliente o assunto a ser conversado e consequentemente a direção do movimento, tanto no processo terapêutico, quanto no processo de ensino.

            A partir dessa perspectiva, também é possível se pensar na enorme contribuição que o olhar compreensivo possui sobre as interações interpessoais. A postura de um professor diante do aluno, caracterizada por uma compreensão e escuta paciente de suas demandas e experiências possibilita que o aluno se sinta reconhecido e acolhido da melhor maneira e, sentindo-se compreendido, é possível que se modifique. Quanto mais um indivíduo é reconhecido, maior a tendência de abandonar as falsas defesas que criou para enfrentar a vida e maior sua tendência a mover para frente. Essa necessidade de se defender por vezes pode ser caracterizada por comportamentos reativos, agressivos, antissociais e prejudiciais.
             Relações pautadas na compreensão e aceitação da subjetividade do outro também podem ser observadas em situações familiares. Atitudes dos pais para com os filhos denominadas “atitudes de aceitação democrática”, caracterizam-se por relações de igual para igual, realizadas a partir do afeto, e demonstram resultar em desenvolvimento intelectual acelerado por parte dos filhos, além de maior originalidade, maior segurança e controle emocional. Por outro lado, quando os pais adotam “atitudes de rejeição ativa”, surgem resultados como leves retardamentos do desenvolvimento intelectual das crianças, utilização pobre de suas capacidades, instabilidade emocional e comportamentos de rebeldia, agressividade e agitação.
            Tendo em vista os inúmeros efeitos colaterais comportamentais que uma relação baseada na autoridade pode promover, é importante analisar as estratégias apontadas por Rogers como saídas para uma relação de ajuda. Entre elas, ele detalha sobre a importância de se apresentar como verdadeiramente é, para construção de vínculos baseados na confiança. Quando se demonstra e expõe verdadeiramente o que se é, o terapeuta, pai ou professor se posiciona por inteiro e proporciona a confiança. Outra saída diz respeito à já citada importância de se estabelecer uma relação demonstrada no reconhecimento de quem o outro é e do que já viveu e traz consigo, pois assim demonstram-se sentimentos positivos e ao mesmo tempo fortalece-se a confiança. Assim também é possível se demonstrar à pessoa que não há um juízo de valor nessa relação, o que permitirá que ela mesma perceba que o julgamento reside dentro de si mesma. Por último, mas não menos importante, Rogers detalha a importância de se ter em mente que não é produtivo perceber o cliente/paciente/filho como um indivíduo rígido e fechado em um conceito pré-determinado, no sentido de que é preciso pensar nas potencialidades e na possibilidade de que suas condições atuais sejam mutáveis e passíveis de transformações.
            A aprendizagem significativa, como fruto da terapia focada no cliente e no ensino focado no aluno, para Rogers, é aquela que provoca uma modificação, seja no comportamento do indivíduo, na orientação da ação futura que escolhe ou nas suas atitudes e na sua personalidade. É possível se observar aprendizagens como percepções diferentes sobre si mesmo, aceitação de sentimentos, aumento da auto-confiança e autonomia, flexibilidade e diminuição da rigidez nas percepções, adoção de objetivos mais realistas, comportamentos mais maduros, modificação de comportamentos mal adaptados e maior aceitação dos outros. Estudantes que estão em maior contato com os problemas da vida procuram aprender, desejam crescer e descobrir, esperam dominar e querem criar. Todas essas aprendizagens e mudanças puderam ser relatadas por um caso exposto na obra “Tornar-se pessoa” em que Samuel Tenenbraum pôde detalhar sua experiência primeiramente como aluno de Rogers, a experimentar de perto a teoria e técnica humanista e, posteriormente, demonstrando sua eficiência em suas próprias práticas como professor em sala de aula.
            Por fim, Rogers fala sobre os resultados da terapia focada no cliente para a vivência intrafamiliar. Entre eles, está o aumento da compreensão sobre si mesmo e o consequente aumento da compreensão do próximo, em suas características e individualidades. Ao mesmo tempo, quando o indivíduo se torna capaz de entender seus próprios sofrimentos, toda a angústica, raiva e agressividade perde seu poder explosivo e é possível questioná-los e ressignificá-los, inclusive em relações que os provocam.
            Tendo em vista a violência e a agressividade recentemente vivenciadas dentro do contexto escolar e buscando uma estratégia que facilite a prevenção e desestruturação disso, a teoria rogeriana demonstra que ter o olhar voltado para o indivíduo e suas experiências, de maneira compreensiva e aberta para as mudanças graduais e duradouras, tende a trazer bons resultados que podem se refletir em outros contextos e possibilitarem novas vivências e novas decisões para o futuro. Se há um espaço aberto para que o aluno converse sobre suas angústias, muitas vezes vivenciada fora da escola, mas trazidas para suas relações escolares, e este aluno percebe estar sendo acolhido com compreensão e empatia, ele mesmo poderá encontrar os caminhos para sua modificação, buscando novas estratégias, tornando menos rígidas suas percepções e podendo, inclusive, refletir essas mudanças no contexto familiar. Escolas que adotem a filosofia humanista podem contar com um método mais aberto às subjetividades de cada aluno e, em suas dinâmicas em sala de aula, podem promover maior aceitação mútua às individualidades de cada aluno, construindo conceitos que vão desde o respeito ao próximo, passando pela compreensão da demanda de cada um e chegando à motivação de ajudar o outro em seu próprio conhecimento. Diferente de uma educação pautada nas relações hierárquicas e autoritárias, o ensino focado no aluno, de base puramente humanista, parece abrir portas para uma estruturação do ser de forma mais consciente e pacífica, gerando indivíduos que, desde cedo, percebem o próximo como um outro com próprias demandas e especificidades, exercitando a tolerância e a empatia e, ao mesmo tempo, prevenindo situações de violência e exclusão.     

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Os efeitos da estratégia educacional autoritária sobre os comportamentos de crianças e adolescentes e a possibilidade de ocorrência do Bullying- Uma reflexão Behaviorista • The effects of an authoritarian educational strategy on the behaviors of children and adolescents: a possibility of Bullying



          




O pressuposto da teoria de Skinner é explicar o comportamento humano como resultado da influência de estímulos presentes no meio. A compreensão acerca da forma como esses estímulos agem sobre os comportamentos é importante, pois assim se torna possível fazer modificações nos estímulos, provocando mudanças comportamentais desejáveis. O comportamento opera sobre o meio e por ele é reforçado ou punido. A frequência do comportamento depende dos estímulos que o seguem e também de seus potenciais reforçadores ou aversivos à pessoa que os elicia. Um estímulo reforçador, por exemplo, age diretamente sobre o comportamento, possibilitando uma nova ocorrência e assim, aumentando sua frequência e probabilidade de eliciamento. Por exemplo, no contexto da escola, um aluno que estuda adequadamente para uma prova pode ser reforçado pela consequente boa nota na avaliação, aumentando a probabilidade de que ele estude com qualidade mais vezes. Uma punição, por outro lado, age diretamente sobre um comportamento indesejável de forma aversiva, limitando-o e/ou cessando-o por completo. Por exemplo, um aluno que tem más condutas na escola pode ser punido pelo professor com algum castigo que seja suficientemente aversivo e assim seus comportamentos poderiam ter suas frequências diminuídas. O que se observa, no entanto, é que a punição possui alguns efeitos específicos: a) inibe temporariamente o comportamento, podendo perder seu potencial avesivo com o tempo; b) pode ter seus efeitos estendidos a outros comportamentos vinculados ou próximos ao comportamento punido, como diminuir a frequência com que um aluno conversa em sala de aula, mas diminuir também a frequência da fala do aluno, mesmo quando ela é desejada em outros contextos; e c)pode exercer sua função apenas quando a contingência de punição ou o agente punidor estiverem próximos, por exemplo, quando a criança é punida por um professor por eliciar comportamentos indesejáveis e, na ausência desse professor (agente punidor), os mesmos comportamentos ressurgem  (Ries, 2001).
            No contexto escolar, a autoridade está intimamente ligada à (in)disciplina, ocorrendo porque o projeto pedagógico prevê relações assimétricas de poder, no qual o docente exerce autoridade sobre o aluno (De La Taille, 1999). A maneira como o professor exerce sua autoridade em sala, de forma autoritária ou liberal, é vital para o estabelecimento de situações de disciplina em sua turma (Araújo, 1999). No entanto, autoridade vem sendo tradicionalmente confundida com autoritarismo e o aluno se cala por temer as punições e ameaças do professor, enfraquecendo, progressivamente, a relação professor aluno(Novais, 2004). Para Lobrot (1977), a autoridade se contrapõe à liberdade,visando se impor ao outro idéias, crenças e hábitos desejáveis. Isso seria possível a partir de estratégias repressivas, que envolvem a coerção, pelo direcionamento através de ameaças e recompensas. A autonomia de pensamento e ação acaba sendo fruto da internalização de regras e deveres que são vivenciadas diariamente no processo pedagógico, por intermédio da autoridade docente (Davis &Luna, 1991). Essa coerção cria um clima emocional em sala que pode gerar hostilidade, ressentimento, passividade e sentimentos de inferioridade, que dificultam ainda mais o trabalho pedagógico (Furlani, 2003), o professor se volta aos alunos indisciplinados, promovendo a punição pelos comportamentos indesejáveis, mas não favorece o desempenho adequado do aluno. Diante dessa situação, algumas respostas podem ser obervadas por parte dos alunos, entre elas a revolta, como uma reação contra o autoritarismo da escola, manifestando comportamentos que vão desde a indisciplina até a “delinquência” (Novais, 2004).
            O controle comportamental do tipo coercitivo, para influenciar comportamentos,  é feito pelo uso de reforço negativo ou punição. Reforço negativo é uma estratégia de reforçamento que tem o objetivo de aumentar um comportamento visado, retirando-se um estímulo aversivo para o indivíduo. Por exemplo, se a professora quer que o aluno faça silêncio e preste atenção na aula, pode tentar controlar seu comportamento oferecendo a possibilidade de ele não precisar fazer o dever de casa, que a priori teria uma significação negativa para o aluno. A punição, positiva ou negativa, tem o objetivo de diminuir a frequência de um comportamento, podendo retirar um estímulo agradável para o indivíduo (negativa) ou inserindo um estímulo aversivo (positiva) para o indivíduo (Sidman, 1995). Para Marinho (1999), crianças e adolescentes expostos ao controle de comportamento por meio da coerção podem manifestar comportamentos antissociais, com características agressivas e rebeldes, além de défict em habilidades sociais, dificuldades escolares, ressentimento e baixa habilidade para solucionar problemas. Para Sidman (1995), crianças e adolescentes educadas por meio da coerção tendem a reproduzir esse padrão punitivo com outras pessoas e em outros contextos, especialmente quando se tornam adultos. Além disso, pessoas expostas ao controle comportamental tendem a encontrar estratégias de evitação, como a fuga e a esquiva, que não proporcionam aprendizado, apenas paralizam o sujeito, que passa a desenvolver dificuldades de se expor a novas contingências, podendo retrair-se e manifestar dificuldade em relacionamento social (Namo & Banaco, 1999).

            Tendo em vista a definição de Bullying proposta por Fante (2005), que o caracteriza como uma série de atitudes agressivas, intencionais e repetitivas, direcionadas a um aluno ou um grupo e produzindo dor, sofrimento, angústia e retraimento social, e ainda, tendo em vista que esse contexto de intimidação ainda não possui apenas uma explicação teórica para sua origem e ocorrência, questiona-se: seria possível que alunos que vivenciam frequentemente contingências punidoras como forma educativa, na escola e na família, estejam reproduzindo esses comportamentos em outros contextos, como uma reação ao aprendizado baseado na coerção (Sidman, 1995)? Se o controle de comportamentos caracterizado pela coerção é responsável por alta ocorrência de comportamentos reativos agressivos, violentos e antissociais (Marinho,1999), é possível traçar uma alta probabilidade de alunos agressores terem vivenciado algum tipo de violência, doméstica ou escolar, caracterizada pelo uso de ameaça, controle e punição, como igualmente demonstra o estudo de Pinheiro e Williams (2009).
            Pais e professores precisam estar mais atentos aos efeitos de uma educação baseada no controle coercitivo, a fim de se evitar consequências e significações, por partes de crianças e adolescentes, que os levem a se comportar de maneira agressiva e violenta em outros contextos, principalmente quando adultos, repassando essas condutas de forma transgeracional. Uma alternativa ao uso da punição seria a utilização do reforço, positivo e/ou negativo, em casa e na escola. Os esquemas reforçadores promovem o aprendizado do indivíduo e a mudança do comportamento de uma maneira pacífica, não utilizando a linguagem da ameaça, o que possibilitaria o crescimento individual e o conhecimento de si (Souza, 2009), sem estar exposto a medo e aversão, que podem ser causados pelo uso contínuo da punição, e sem precisarem utilizar estratégias de fuga e esquiva, que não proporcionam um aprendizado duradouro. 

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Violência, Bullying, Família e Escola • Violence, Bullying, Family and School



         

   A família e a escola, como agentes primários de socialização (Ferreira, 1997), têm função importantíssima na construção dos conceitos que envolvem boa convivência entre pares, responsabilidades e deveres, assim como o fortalecimento de valores morais e éticos, como o respeito mútuo, a empatia, a compreensão e a solidariedade, não somente entre os membros da família e alunos, mas entre cidadãos que compõem uma sociedade ampla.
            Tendo a família como a base de formação do ser, é compreensível delegar a ela uma enorme responsabilidade de servir-se de exemplo para os filhos, uma vez que dentro dela é possível aprender leis de convívio perpassadas pelas gerações, valores e responsabilidades, questionamentos e reflexões. Resposabilidades essas que remetem à Teoria da Aprendizagem Social (Bandura, 1973), que fala justamente da facilidade que a criança encontra em aprender condutas e comportamentos tendo como base as atitudes observadas dentro da própria família, principalmente entre as figuras maternas e paternas. A partir dessa teoria também é possível compreender os motivos pelos quais várias crianças se comportam de forma agressiva em contextos externos à convivência familiar, principalmente na escola. Vários pesquisadores têm encontrado uma íntima relação entre violência doméstica, no âmbito psicológico, físico e moral, e condutas agressivas em crianças na escola, participando como agressoras ou alvos/autoras de agressão (Pepler, Catallo & Moore, 2000).
            A criança, parte integrante da família, vivencia a agressão doméstica de forma direta, sendo alvo da agressão, ou de forma indireta, presenciando atos de violência entre os pais. De amba as formas, prejuízos à criança podem ser gerados (Jouriles, McDonald, Norwood, Ezell, 2001), como manifestações de comportamentos agressivos e até o desenvolvimento de Transtornos de Conduta que, segundo o DSM-IV-TR são caracterizados por um padrão persistente de comportamento que viola os direitos básicos dos outros e as normas ou regras sociais importantes e apropriadas à idade. Dentre os vários motivos que levam a um episódio de violência doméstica, há um consenso na literatura de que problemas de saúde dos pais, dentre eles o abuso de drogas e alcool, são fatores estressores que propiciam o desencademento desse tipo de violência (Caminha, 1999). Webster- Stratton (1997) afirma que mães com depressão, pais alcoolistas e comportamentos agressivos e anti-sociais dos pais implicam em fatores de risco.           
            A relação entre a participação das crianças, de forma direta ou indireta, na violência doméstica e a consequente manifestação de comportamentos agressivos na escola foram evidenciados pelos experimentos de Maldonado & Williams (2005) e Pinheiro e Williams (2009). No primeiro estudo, foram entrevistadas 28 mães, sendo 14 de crianças agressivas e 14 de crianças não agressivas, estudantes de uma escola pública de São Paulo. Das 14 primeiras,  28.6 % relataram a ocorrência de “violência em casa”, enquanto as segundas não relataram. Quanto à “violência contra a criança”, 42.9% das primeiras mães relataram a ocorrência, em relação aos 14.3% das mães  do segundo grupo.
            O segundo estudo explorou o conceito de Bullying e teve o objetivo de relacionar a violência doméstica com a participação, de alguma forma, em práticas de intimidação (Bullying) escolar. Ele é caracterizado por um conjunto de atitudes agressivas, intencionais e repetitivas, ocorrendo sem uma motivação evidente, praticado por um aluno ou um grupo, contra um aluno ou vários, causando dor, sofrimento e angústia. Esses atos compreendem insultos, intimidações, apelidos cruéis, além de danos físicos, morais e materiais, entre outros (Fante, 2005). Alguns autores dividem esse tipo de violência em três categorias: a intencionalidade do ato, a prolongação no tempo e o desequilíbrio de poder físico, psicológico ou social entre os envolvidos. Pinheiro e Williams encontraram que, de uma amostra de 239 adolescentes entrevistados, 49% relatou ter tido algum envolvimento em Bullying três meses anteriores à pesquisa. Sendo que destes, 26% foram exclusivamente vítimas, 21% foram alvos/autores de intimidação e 3% exclusivamente autores. No geral, 91,8% dos alunos que foram agredidos pela mãe ao menos uma vez estavam no grupo de alunos que sofreram e praticaram o Bullying, ou seja, os alunos que sofreram pelo menos um tipo de violência por parte da mãe tinham 3,2 mais chance de se envolver em Bullying como alvo/autores do que aqueles que não sofreram essa violência. Entre outras análises estatísticas mais complexas, de forma geral, os resultados confirmaram que os alunos que vivenciaram a violência doméstica, de forma direta e/ou sendo expostos à violência interparental, tinham maior probabilidade de se envolver em situações de intimidação (bullying) na escola, especialmente como alvo/autores.
            De forma conclusiva, lança-se um questionamento em relação à violência tão freqüentemente observada atualmente no contexto escolar, e o convívio familiar e suas especificidades. Existem diversas políticas de prevenção e luta contra a violência doméstica, principalmente a que envolve a violência contra a mulher, tão freqüentemente vivenciada por crianças e passadas de forma transgeracional ao longo dos anos. Mas as políticas não estão dando conta da enorme consequência a longo prazo a que essas crianças estão submetidas. A partir dos dados estatísticos apresentados, é possível se afirmar que a violência em casa é a principal formadora das condutas dos filhos, observadas na escola. Se a criança aprende o vocabulário da agressão como forma de solução para os relacionamentos interpessoais, ela possivelmente o reproduzirá quando for preciso e, tendo em vista a fase escolar, que compreende os longos anos da infância e da adolescência, a instituição escola talvez seja o principal endereço dessas manifestações sociais de violência, domínio, abuso da liberdade, desrespeito, falta de empatia, entre outros. Pode-se afirmar que o comportamento agressivo dos filhos nas escolas poderia ser compreendido como um “pedido de socorro”, já que a apresentação de comportamentos violentos pode ser considerado um fator indicador de que a criança se econtra em situação de risco, frente à exposição à violência severa (Maldonado & Williams, 2005).
            Que tipos de intervenção deveriam ser feitas? Como a família deveria participar nesse processo? Que função a escola tem quando participa ativamente de uma situação de violência e precisa intervir pelos alunos, vítimas e agressores? De que forma poderia haver uma comunicação entre a família e a escola?