quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Gênero e violência conjugal • Gender and domestic violence



É milenar a história da vitimação feminina à visão hierárquica do patriarcado, que sempre colocou a mulher em uma posição de subordinada e passiva, diante de um poder masculino sempre ativo e disciplinador. Podemos chamar de gênero o papel que homens e mulheres têm na sociedade, e papéis de gênero, as atividades, comportamentos e funções atribuídas a eles.
Os papéis de gênero estão nitidamente retratados no nosso cotidiano nas mais variadas formas. A sociedade brasileira ainda carrega consigo um imaginário machista que se reflete desde a vivência dentro de casa, com a nossa educação de berço, até na consolidação da justiça, que teoricamente deveria privar por direitos iguais e justos. Apesar de muito ter mudado ao longo do tempo, inclusive com o movimento feminista, que conquistou um espaço fundamental nas políticas públicas e na reflexão social, infelizmente ainda se vive uma discriminação muito grande no que diz respeito à vivência feminina, em todas as dimensões.
É nítido o modelo educacional brasileiro passado de geração para geração. Desde crianças somos instruídos a ver o papel de homem e mulher muito bem consolidado, com regras, valores e idealizações bem limitados. As meninas aprendem a ver o mundo como um espaço que demanda uma postura materna, um preparo físico e emocional para ser reprodutora, dona de casa e boa mulher. Os meninos aprendem a se ver como provedores de uma vida familiar, estimulados a investirem em carreiras profissionais, a virarem seus olhares para o universo público. Esses papéis de gênero não são internalizados somente por meio da educação de casa, todos os meios de comunicação contribuem para a perpetuação desses ideais, mesmo que de forma indireta, moldando cabeças e instruindo condutas e atitudes perante uma sociedade que deveria ser totalmente heterogênea. Quantas vezes não vimos propagandas na televisão, retratando o contexto familiar e utilizando a imagem da mulher ora como uma dona de casa dedicada, ora como um pedaço de mau caminho, totalmente sedutor e perigoso? Quantas vezes não vimos em revistas femininas páginas e mais páginas estimulando cada vez mais o pensamento amedrontador da mulher, produzindo cada vez mais pensamentos machistas e debilitantes, do como agir em sociedade, o que fazer e o que não fazer diante de certas situações?
Toda essa visão da mulher como um ser frágil e submisso colabora para as relações de poder que se formam, quase que naturalmente, dentro de interações homem - mulher. Seja dentro da família com o pai sendo o centro disciplinador, seja dentro de relações afetivas, em que o cônjuge permanece em um papel ativo e dominador, seja no contexto do trabalho, em que homens exercem cargos de alto poder.
Muito provavelmente , essa internalização do poder masculino seja o principal fator que colabore para a ocorrência de tantos casos de violência conjugal, em que a mulher pode estar submetida, realmente, a uma relação de dominação e por simplesmente não poder se defender sozinha. O que se tem percebido é uma dificuldade de traçar um perfil de agressor, demonstrando que pode não existir uma padronização de comportamentos e de condutas masculinas que caracterizem esse quadro. Boa parte dos agressores é constituída por homens de classe média, com boa instrução e sem históricos prévios de violência. Então o que exatamente faz com que situações como essas ocorram?
Pesquisas têm demonstrado que homens tendem a praticar violência em momentos de raiva, reagindo a algum pensamento destrutivo em relação à mulher. Apesar de não haver um perfil muito bem determinado, há sinais prévios que demonstram ciúme e proteção exagerada por parte do homem, além de outros episódios de violência psicológica, normalmente muito difíceis de serem detectados. Talvez uma melhor pergunta gire em torno do motivo pelo qual tantas mulheres permanecem submetidas a relações conjugais violentas e por que parece tão difícil ter atitudes que decidam de uma vez por todas por acabar com esse ciclo de agressividade. Alguns dos vários motivos que as mulheres apontam para não denunciarem algum ato de violência dizem respeito ao medo de reagirem à agressão e passarem por algo muito pior posteriormente. Há mulheres que tendem a ver o ato de agressão como algo naturalizado, o pensamento de que é normal se esperar de um homem atitudes violentas, sinal de uma compreensão de papéis de gênero muito provavelmente passada por outras gerações. Há mulheres que preferem se submeter a relações conjugais violentas para protegerem seus filhos, para manterem a dinâmica familiar e também por relatarem amarem seus cônjuges e não verem o ato violento como algo de muita importância.
É importante se dizer que qualquer relação de violência, seja ela envolvendo homens agressores e mulheres vítimas, seja ela envolvendo homens como vítima e mulheres como agressoras, envolve uma interação dinâmica que precisa ser compreendida. O acolhimento é um procedimento de altíssima importância em qualquer um dos casos, pois terá um papel protetivo e preventivo, possibilitando até a resolução de problemas conjugais, centrais nesse contexto de violência.
Outra questão que pode ser levantada acerca do tema diz respeito aos diversos casos de violência conjugal praticamente inacabados e sem proteção nenhuma por parte do Estado. Apesar de a Lei Maria da Penha ter sido consolidada há alguns anos, ainda se pode ver posturas extremamente machistas no contexto jurídico, que acaba por transformar a agredida em transgressora, levantando motivos totalmente descabidos para justificar a atitude agressiva do cônjuge e tomando decisões que não visam a proteção da vítima, possibilitando novos episódios de agressão.
As discussões acerca dos papéis de gênero e das relações de poder são tópicos cada vez mais crescentes. Há ainda uma grande necessidade de reflexão acerca do tema para se levantar melhores idéias e posturas que podem gerar melhores acolhimentos e decisões protetivas. Compreender os motivos que levam uma relação a se estabelecer como uma interação de poder e violência é fundamental, mas saber como agir nessa situação, dando apoio à vítima, buscando a compreensão dessa dinâmica relacional e tomando decisões corretas que visem a prevenção de novos episódios violentos é ainda mais importante.