terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O mal que habita em todos nós: reflexão sobre a psicopatia • The evil that dwells in us: reflecting on the psychopathy




Quantas vezes não nos deparamos com notícias escandalosas sobre crimes brutais cometidos das mais variadas maneiras, contra as mais variadas pessoas? Crimes que geram desconforto nacional e internacional, que abrem discussões em diversas esferas, magoam muita gente, impressionam, chocam, causam repúdio, julgamentos, movimentos de luta, perdas de sono...Surgem perguntas perturbadoras que não possuem respostas imediatas, como por que aquela pessoa foi capaz de fazer tal atrocidade, o que a levou a fazer isso, por que aquela vítima sofreu e qual a melhor vingança a ser feita.
Por outro lado, longe de um acontecimento que choca uma nação inteira, estão movimentos de divulgação da violência de uma maneira massiva, manifestados por veículos de comum acesso, perpassando nossos cotidianos sem ao menos termos noção e reflexão sobre eles. Querendo ou não, é através desses veículos que formamos opiniões, adquirimos uma parte de nossos conhecimentos, fundamos valores e aprendemos com experiências alheias. É também a partir deles que organizamos pensamentos hostis todas as vezes em que vemos notícias como as mencionadas anteriormente.
O ser humano é movido por violência. Ela está dentro de nós e é assim que ela é manifestada. Seja sentindo prazer ao assistir lutas pela televisão, ou ao praticá-las na vida real, seja indo ao cinema assistir sequências de filmes sangrentos, seja acompanhando o julgamento de uma pessoa que aparentemente merece todo o mal do mundo por ter feito mal a outra pessoa. De uma maneira ou de outra, aprendemos a ser assertivos desde pequenos, convivemos com várias fontes de agressão e violência, nos mais variados graus, e de certa forma somos capazes até de termos diversão a partir dela. Há até como falarmos da violência como uma característica inata, temos a capacidade de usá-la para nos defendermos, para defendermos um filho ou um familiar, observamos sua presença em comportamentos de outras espécies, ela está presente no nosso cotidiano, em nossas ações e em nossos pensamentos, de um jeito ou de outro.
A partir disso, é possível também se pensar acerca das capacidades que cada indivíduo possui de controlar sua própria violência, além do que essa violência significa para cada um, como ela se desenvolveu e em que esteve envolvida ao longo das experiências. Cada um de nós possui uma formação de personalidade e tendências desde o nascimento, nossos laços familiares, nossas convivências e aprendizados, nossas impressões e experiências boas e ruins, significações que fazemos acerca de nós mesmos e dos outros, formações de identidade, identificações, todos esses processos estão envolvidos intimamente com a forma como construímos esse conceito em nossa mente. Há crianças que vivenciam os mais variados tratamentos, desde a negligência e a violência explícita, física, emocional e sexual, até a superproteção e o fornecimento de um senso de onipotência. Se tudo isso acontece e favorece a formação de um ser em crescimento, além de basear significações que acompanham cada passo ao longo da vida, é plausível se imaginar que vários indivíduos possuem universos de experiências, sensações e sentimentos que organizarão todas as suas condutas dali para frente e isso pode estar completamente ligado ao controle emocional e à ação violenta.
Ao se falar em Psicopatia ou Transtorno de Personalidade Antissocial, há várias referências teóricas que trazem respostas prontas e fechadas sobre o tema. As mais utilizadas no meio médico e psicológico estão caracterizadas em manuais diagnósticos que possuem pouquíssima informação detalhada sobre cada sintoma procurado, o que faz com que a lista de critérios diagnósticos possam ser facilmente encaixados em vários indivíduos, trazendo vieses e banalizações, além limitações para o campo profissional. Exemplos de profissionais da saúde que seguem fielmente esses manuais há aos montes, que publicam livros sensacionalistas, dedicando páginas e mais páginas a um detalhamento de traços negativos e pesados sobre pessoas que portam tais transtornos. Esses meios de informação também colaboram para as reações tipicamente hostis que percebemos socialmente, cada vez que um caso ou acontecimento do gênero é divulgado.
Por trás de uma pessoa que comete um crime, está uma subjetividade gigantesca, composta por diversos eventos passados que colaboraram para a formação de seu caráter. Por mais que nós, psicólogos, precisemos usar as convenções estatísticas para Transtornos Mentais e de Personalidade para guiarmos nossas ações profissionais no trato desses fenômenos, há uma realidade complexa vital em cada um desses casos que impede que se faça uma separação desses indivíduos em relação aos outros e desabilita a possibilidade de se descrever seus atos e sua moral com parágrafos que acabam por denegrir suas reputações, como se pudéssemos reduzir todo um ser e uma vida a uma figura animalesca, imperfeita, monstra e fria, capaz de causar o mal para o próximo.
Ao longo desse semestre precisei desenvolver leituras e estudos acerca do tema e precisei fazer uma vasta e longa avaliação de personalidade de um paciente de um grupo de atendimento do qual faço parte na minha universidade, para finalizar uma parte do meu curso e poder finalmente ter meu título de Bacharel. É impressionante encontrar que por trás de um rótulo que facilmente existiria em qualquer outro local de atendimento, há uma configuração mental tão específica e tão complexa, que só as ferramentas que tive a oportunidade de utilizar possibilitariam essa descoberta (Método de Rorschach). Uma entrevista diagnóstica crua, que busca os sintomas ridiculamente traçados nos manuais diagnósticos ignora a subjetividade de cada  sinal demonstrado pelo indivíduo e automaticamente negligencia o que realmente importa. A avaliação da dinâmica do indivíduo, por outro lado, compreende toda a sua estrutura, suas tendências, suas potenciais emoções vividas, pontos de recursos e demandas, traços patológicos ou não.
Essa pessoa avaliada traz consigo um histórico de extremo sofrimento e dor, com uma vivência confusa de suas emoções e um evidente significado em torno das relações interpessoais e emoções que foi adquirido ao longo de suas próprias experiências. O que mais se poderia esperar de uma pessoa que provavelmente vivenciou alguma violência extrema quando mais nova, não teve a oportunidade de resignificá-la e possivelmente continuou imersa em um contexto que favoreceu a formação de um conceito um tanto distorcido acerca da verdadeira maneira de se aproximar de outra pessoa, de como manter relações pacíficas e de como controlar as emoções? Nessa configuração, é totalmente plausível se esperar que haja reações violentas e destrutíveis, pois essa foi a linguagem adquirida ainda em tenra idade e há um sofrimento muito intenso envolvido, que marca fortemente e definitivamente a existência daquela pessoa, influenciando sua auto-imagem ao longo de sua vida. 
O objetivo aqui não é manifestar opiniões favoráveis às atitudes violentas e criminosas que vemos frequentemente na mídia. Sabemos das obrigações de cada cidadão e sabemos que temos leis a cumprir e valores morais e manter e passar de geração para geração. Para toda ação maléfica que vai de encontro com a lei deve existir uma contrapartida justa, uma punição adequada e uma reestruturação e recuperação do ser que errou. Mas é preciso questionar e ir mais além. Por trás daquele monstro que friamente violentou uma mulher, existe um ser humano que está em intenso sofrimento e precisa de atenção.
Afinal de contas, ao sermos notificados de crimes cruéis como esses, damos o direito a nós mesmos de pensarmos de forma agressiva e de querermos uma vingança imediata. É comum ver movimentos de todas as partes, com julgamentos, xingamentos, motivações destrutivas diversas. Estamos pensando e agindo como a pessoa que cometeu o crime e nem ao menos estamos vendo. Não porque também somos monstros e porque somos insensíveis para percebermos isso. Mas porque também somos seres humanos, que legitimamente ou ilegitimamente podemos manifestar problemas com nossas tolerâncias e emoções.
É possível encontrarmos as respostas para aquelas várias perguntas se olharmos para dentro de nós mesmos e percebermos que somos todos muito parecidos, cada um em sua especificidade e riqueza interna.